Unidos contra a hecatombe
O abraço trocado entre Lula e Marina, duas lideranças há anos afastadas, encarna a nossa possibilidade de defesa perante inimigos tão ferozes
Por Sidarta Ribeiro.
o cárcere em 1937, pouco antes de mor-
rer. Em 1917, na Casa de Detenção do Re-
cife, veio a conhecer e proteger um ado-
lescente franzino e analfabeto que ha-
via sido preso na primeira greve geral
do Brasil, por direitos como a jornada
diária de oito horas de trabalho e o des-
canso semanal. Era Gregório Bezerra.
O jovem era valente e havia sido isola-
do para não sofrer violência, mas o ho-
mem maduro o ensinou a conviver pa-
cificamente com os outros prisioneiros.
Silvino aprendera a ler na prisão e sua
opinião sobre o que lia nos jornais forjou a
formação política de Gregório. Foi através
dele que o rapaz ficou sabendo da Revolu-
ção Russa. Nas palavras do ex-cangacei-
ro, em Memórias (Boitempo, 2011), “o po-
vo reunido é mais poderoso do que tudo e
a revolução dos bolcheviques vai se espa-
lhar pelo mundo. A lei do maximalismo –
era assim que se referia ao marxismo –,
com um homem como este (Lenin) que
está no poder, vai triunfar. Esse homem
tem muito juízo e muito talento na cabe-
ça. Ninguém pode com ele”.
Bezerra deixou a prisão quatro anos
depois e se alistou no Exército, onde vi-
ria a se alfabetizar e a se fortalecer até
se tornar sargento instrutor de educação
física. Em 1930, filiou-se ao Partido Co-
munista Brasileiro e, em 1935, foi nova-
mente preso, após a tentativa frustrada
de derrubar Getúlio Vargas e combater o
fascismo integralista. Na enfermaria da
Casa de Detenção, deparou-se com sua
primeira visita. Era o velho amigo Antô-
nio Silvino, que trazia solidariedade, mas
também uma dura crítica à insurreição
fracassada. Segundo Briguilha, Silvino
teria dito nessa ocasião: “Vocês maxima-
listas não aprenderam nada. Demora mil
anos para nascer um outro Lenin”.
Já vão longe o cangaço e as revoluções
armadas, mas, infelizmente, ainda não
nos livramos nem do latifúndio nem do
fascismo. Em duas semanas, iremos às ur-
nas e a força da nossa democracia será me-
dida por nossa capacidade de fazer elei-
ções sem voto de cabresto nem terroris-
mo. Infelizmente, entretanto, a violência
política vem crescendo. Os recentes as-
sassinatos de lulistas por bolsonaristas
projetam a sombra aziaga da guerra civil.
É por isso que me enche de esperança
o abraço trocado entre duas lideranças
legendárias de nosso tempo, afastadas
há anos, mas reunidas novamente pelo
bem do País. Irmanados pela origem ru-
ral, pela sobrevivência à fome, pelo com-
promisso com a massa trabalhadora e pe-
lo sobrenome Silva, Lula e Marina encar-
nam o que de melhor o povo brasileiro já
produziu em sua própria defesa perante
inimigos tão ferozes.
Não sei se demora mil anos para nascer
um outro Lula ou outra Marina, pois a ca-
da dia, nas favelas e nos grotões deste país,
nascem muitas crianças com esse poten-
cial. O que sei é que tão cedo não teremos
outra chance de consertar o País. A Chi-
na já decolou rumo ao século XXI, o He-
misfério Norte se descola cada vez mais
do Sul global, enquanto seguimos na con-
tradição que Lévi-Strauss e Caetano Velo-
so apontaram com precisão: ainda esta-
mos em construção, mas já somos ruína.
Por isso é tão belo o reencontro de Marina
e Lula. Precisamos do mais amplo arco de
alianças para reconstruir o que ainda resta
após a hecatombe socioambiental do atual
governo. Precisamos de pessoas tão dife-
rentes quanto Sônia Guajajara e Geraldo
Alckmin, as Luizas Erundina e Trajano,
Guilherme Boulos e Alexandre Kalil,
Ricardo Galvão e Fátima Bezerra, Talíria
Petrone e Henrique Vieira, Natália Bona-
vides e Marcelo Freixo, Douglas Belchior
e Eduardo Gianetti, Erika Hilton e André
Barros, Tatiana Roque e Joênia Wapichana,
Marília Arraes e Fernando Haddad.
Precisamos de todo o nosso talento,
técnica, amor e sabedoria para, final-
mente, honrar as lutas de pessoas como
Antônio Silvino e Gregório Bezerra. A
esperança está no ar. O Brasil abre suas
asas pra voar.
CARTA CAPITAL