Vai ter golpe. Passe a informação
A hora de agir contra o coronavírus é agora." Você deve ter lido títulos parecidos nos últimos dois anos, só que esse foi publicado pela Folha em 10 de março de 2020. A praga engatinhava, em comparação ao que viria mais tarde, mas Yascha Mounk, em coluna no jornal, alarmava os leitores para o que já percebia inevitável: a Covid-19 varreria o planeta em pouco tempo, sendo a quarentena e o distanciamento social as únicas saídas imediatas.
No mesmo dia, a manchete da Folha falava de pânico nos mercados, Bolsa despencando 12%, preço do petróleo concorrendo pelo maior estrago com o então desconhecido coronavírus. O mundo derretia e, em Miami, Jair Bolsonaro dizia que "está superdimensionado o poder destruidor desse vírus", uma das tantas pérolas que qualquer horário eleitoral que se preze deverá reproduzir à exaustão neste ano. Logo abaixo da frase destacada, uma chamada para a Itália, então o país mais afetado depois da China, que acabava de adotar quarentena geral.
A página tinha ainda outro título para o presidente: "Bolsonaro pressiona Congresso e volta a falar de fraude eleitoral". Crise, petróleo, vírus? Não, o problema seria a fraude que nunca existiu.
A emergência sanitária já era séria o suficiente, mas lembro que a coluna me assustou. Mounk soava histérico e, ao mesmo tempo, deixava claro que o discurso "mantenham a calma" dos políticos só iria adiar a adoção de medidas radicais e na prática matar gente. Não só na China ou na Itália, mas em todos os lugares. O Brasil de Bolsonaro cumpriu a previsão como poucos, e perdemos quase 650 mil para a doença e o negacionismo.
Na última semana, vários colunistas da Folha dispararam alarmes em tom parecido. Na página A2: "Vai ter golpe", escreveu Mariliz Pereira Jorge; "O golpe de Bolsonaro é militar", segundo Bruno Boghossian; "Ditadura com Bolsonaro", é o que vem a seguir, de acordo com Ruy Castro; "O Golpe pode dar errado", projetou Maria Hermínia Tavares, um fio de esperança, como anotado por leitores, mas que parte do inevitável ato ensaiado desde o dia zero pelo bolsonarismo.
Como lembrou Maria Hermínia, melar a disputa nacional significará melar todos os outros pleitos de outubro. O voto não é apenas para a Presidência, mas para Câmara, Senado, assembleias e governos estaduais. Concorrentes deveriam ser questionados sobre ganhar e não levar. Folha e UOL, por exemplo, desperdiçaram a chance de perguntar nas sabatinas dos pré-candidatos ao governo de São Paulo o que eles farão diante da consumação do golpe e do fato de, quem sabe, estarem eleitos mas impedidos de tomar posse por algum cabo ou soldado.
Na mesma linha, o pessoal da Faria Lima deveria ser indagado se a quartelada já foi precificada e até onde dólar e juros podem chegar após um desarranjo dessa monta. Será que uma XP ainda não projetou o pior cenário? Se algum analista disser que o mercado não trabalha com tal hipótese, basta lembrar que Bolsonaro e seus generais próximos flertam com a tese diariamente.
Será importante também o jornal ouvir parceiros comerciais do país e organismos internacionais sobre a propalada versão tropical da invasão do Capitólio. Os EUA até já se adiantaram. Numa semana, cônsul americano no Rio até 2021, em artigo em O Globo, prevê sanções ao Brasil se as eleições forem prejudicadas. Na seguinte, a agência Reuters aparece com relato sobre o chefe da CIA ter dito ao governo Bolsonaro que não é conveniente ao país contestar o próprio sistema eleitoral.
A leitora e o leitor talvez ponderem que admitir o receio de um golpe é justamente o jogo que Bolsonaro e aliados querem jogar. A questão, acredito, é que já passamos desse ponto. Bolsonaro se perdeu em campo, mas arrasta muita gente com ele apenas pelas circunstâncias. Não pode mais ser tratado como um risco, mas sim como certeza de dano para as instituições e para o país. Precisa ser contido.
Se alguém não lembra ou não sabe o que é um golpe, civil ou militar, está na hora de desenhar e deixar o tamanho do problema bem claro. Vai dar trabalho, vai atrasar ainda mais o Brasil, vai custar caro.
Tenho certeza que Mounk, como os outros colegas que se alarmam agora,
gostaria muito de, passados dois anos, reler seu texto, dar risadas e
comentar algo como quanta bobagem escreveu. Não escreveu nenhuma,
infelizmente.
JOSE HENRIQUE MARIANTE
ilustração: Carval