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  • O BRASIL EH O QUE ME ENVENENA MAS EH O QUE ME CURA (LUIZ ANTONIO SIMAS)

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    Fragmentos de textos e imagens catadas nesta tela, capturadas desta web, varridas de jornais, revistas, livros, sons, filtradas pelos olhos e ouvidos e escorrendo pelos dedos para serem derramadas sobre as teclas... e viverem eterna e instanta neamente num logradouro digital. Desagua douro de pensa mentos.


    domingo, maio 15, 2022

    Tudo o que não posso esquecer


    José Eduardo Agualusa

    Esta manhã saí pela casa procurando os óculos. Vasculhei no quarto, no banheiro, na cozinha. Procurei até debaixo da cama. Nada. Finalmente, desisti. Peguei no livro que queria ler e sentei-me numa cadeira, no pátio, gozando o magnífico sol da primavera lisboeta. Surpreso, me dei conta de que estava conseguindo ler sem o menor esforço: “Para que preciso de óculos?”, pensei orgulhoso, “basta que a luz seja boa, e leio muito bem! Os meus olhos estão ótimos!” Só então percebi que nunca tirara os óculos do rosto. Estivera sempre com eles.

    Dedico parte considerável do meu dia a procurar óculos, documentos, chaves, livros e outros objetos. Não considero que seja tempo perdido porque, ao longo desse processo, sempre descubro outros objetos que perdi há muito mais tempo. Outro dia, também procurando os óculos, encontrei atrás da geladeira um envelope pardo, firmemente selado. Nas costas do envelope estava escrito, em letras grandes: “Não abrir!”

    Antes que me perguntem por que fui procurar os óculos atrás da geladeira, já vou adiantando: por ser um lugar improvável. Aprendi, ao longo de todos esses anos, que os óculos, como os gatos, são especialistas na arte da camuflagem e da ocultação. Não adianta procurá-los onde era suposto estarem, mas, sim, onde nunca os procuraríamos.

    Voltemos ao envelope: segurei-o, desconfiado. Não consegui reconhecer a letra. Cheirei-o. Cheirava um pouco a mofo. Já devia estar ali, atrás da geladeira, há algum tempo. Não fosse o aviso, eu poderia tê-lo pousado em algum lado, e logo me esquecido dele. Contudo, estava claramente escrito: “Não abrir!”, com ponto de exclamação e tudo! Sem o ponto de exclamação, talvez eu não o tivesse aberto. Assim, não resisti. Sinceramente, quem resistiria?

    Fui à procura de uma tesoura, e ao fim de meia hora, depois de ter encontrado um par de tênis que procurava há meses, uma primeira edição d’“Os Maias” (que nem sabia que havia comprado), e um estranho objeto cuja serventia ainda ignoro — e sem ter encontrado a tesoura —, rasguei o envelope à bruta. Encontrei uma folha de papel, preenchida com uma caligrafia tênue e minúscula. Por mais que me esforçasse, não consegui ler nada. Desesperado, voltei a procurar os óculos. Duas horas mais tarde encontrei-os dentro da geladeira, e só então me lembrei que os utilizara pela última vez para ler o rótulo de uma embalagem de salmão.

    Regressei triunfante ao escritório, onde, tinha a certeza, deixara o envelope. Infelizmente, já lá não estava. Passei mais meia hora procurando por ele. Encontrei-o, com a respectiva folha, no interior de uma caixa, muito bonita, onde guardo documentos, postais, fotografias, moedas antigas e uma série de outros pequenos objetos com valor sentimental, que estou firmemente decidido a nunca perder.

    Finalmente, sentei-me à secretária, abri o envelope, retirei a folha e li. Enquanto lia, fui-me recordando: era uma lista que eu mesmo escrevera, dez anos antes, de episódios da minha vida que considerava importantes e que nunca deveria esquecer. Ao longo destes dez anos esquecera todos eles.

    GLOBO

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