Ninguém fotografou a ditadura como Orlando Brito
O fotógrafo não fotografa para si, mas para os olhos que estão distantes. A definição é de Orlando Brito, o grande repórter fotográfico de Brasília. Por quase seis décadas, ele transportou os olhos dos leitores para a capital. Desvendou o teatro da política e foi testemunha ocular da história do Brasil.
Nascido no interior de Minas, Brito migrou para o Planalto Central em 1957, antes de a cidade ser inaugurada. Aos 7 anos, ajudava o pai a levar tijolos aos canteiros de obra. Aos 14, servia cafezinho na sucursal da Última Hora. Foi promovido a laboratorista, aprendeu a revelar filmes, apaixonou-se pelo fotojornalismo. Em 1965, o acaso o presenteou com uma oportunidade. A redação estava sem fotógrafos, e o garoto recebeu a tarefa de acompanhar uma agenda do marechal Castello Branco. “A primeira foto que fiz foi de um presidente”, contava. A estreia seria o prenúncio de uma carreira única na imprensa.
De 1967 a 2018, Brito cobriu todas as posses presidenciais. “A mais emocionante foi a que não houve”, relatou, em depoimento à revista Época. Referia-se à de Tancredo Neves, que adoeceu antes de assumir e só subiu a rampa no caixão. Além da pompa e das cerimônias, Brito registrou a solidão do poder. Numa imagem célebre, Fernando Henrique Cardoso espera uma visita na entrada do Alvorada. Em fim de mandato, o presidente parece esquecido e preso numa imensa gaiola de vidro. A cena lembra uma composição de Mondrian.
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Em 1992, o fotógrafo captou a silhueta de Ulysses Guimarães na contraluz. “Confesso que a imagem me impressionou. Era forte, tinha algo de inquietante”, anotou. Seis dias depois, o deputado morreria num acidente de helicóptero. O clique premonitório virou monumento em Campinas. Em 2020, Brito produziu uma das melhores sínteses visuais da era Bolsonaro. De costas, o capitão observa uma solenidade cercado de generais — dois de paletó e gravata, dois de farda e bastão. A imagem ilustra a volta dos militares ao centro do poder.
Ninguém documentou a ditadura tão bem quanto Brito. Em 1968, ele flagrou deputados atônitos em torno de um rádio. Ouviam a leitura do AI-5, que radicalizaria a repressão política. Em 1977, o regime voltou a fechar o Congresso. O fotógrafo escondeu a câmera, driblou a segurança e conseguiu registrar o plenário às moscas.
Algumas de suas melhores imagens do período foram captadas fora dos palácios. Em 1971, Brito produziu uma metáfora perfeita do autoritarismo: numa torre de observação, um soldado parece pisar em trabalhadores que assistem à parada de 7 de Setembro. Em outra foto marcante, um oficial ostenta uma braçadeira com a palavra “imprensa”. Um retrato da censura que amordaçava os meios de comunicação.
O veterano não engolia as restrições ao trabalho impostas agora, na democracia. Reclamava dos cercadinhos, da vigilância, das barreiras que dificultam o acesso à notícia. “Antes você conseguia fotografar tudo, mas não podia publicar nada. Hoje você pode publicar tudo, mas não consegue fotografar nada”, repetia. Em 2020, ele foi agredido por bolsonaristas ao cobrir um ato na Praça dos Três Poderes. “Me deram um safanão, meus óculos caíram, fiquei meio cego”, contou-me, indignado com a covardia.
Brito também estranhava a incivilidade dos atuais ocupantes do poder. Nada mais distante do seu estilo pessoal. Dono de uma extensa galeria de prêmios, o fotógrafo era conhecido pela gentileza com colegas e fontes. Gostava de lembrar o passado, mas mantinha o entusiasmo de iniciante na batalha pela foto do dia. Partiu na sexta-feira, aos 72 anos.
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