A culpa na crise ucraniana tem muitos donos
Janio de Freitas
A preliminar de todas as turbulências em que se envolveram Estados Unidos e europeus, desde o fim da União Soviética, espera há três décadas a compreensão desses países para tentarem solucioná-la: o comunismo acabou como nação e como movimento, mas os Estados Unidos continuaram contra a Rússia o que era a guerra contra o comunismo. Por quê?
O tema não entra em consideração, por certo pelo temor da reação americana. Onde houve proximidade, entendimentos e interesses da Rússia, os Estados Unidos puseram sob acusações, pressão e riscos.
Assim foi sacrificada, reiteradamente, a oportunidade de convivência menos letal e mais inovadora entre as forças dominantes do mundo.
A Rússia extinguiu os saldos da experiência de convívio equânime de Gorbachev e mesmo de Ieltsin, e assumiu sua contraparte nas confrontações.
A colaboração na aventura espacial foi a exceção da regra, mais por necessidades temporárias dos americanos que por associação de sinceridades promissoras.
Assim a Rússia foi cercada por 14 países que eram partes da União Soviética ou a ela associados, vários deles abrigando armamentos voltados para a Rússia, inclusive mísseis nucleares.
Todos esses países de fora da Europa Atlântica, como a Ucrânia, mas conduzidos pelos Estados Unidos a integrar a Organização do Tratado do Atlântico Norte, Otan, formada sob a liderança americana para aplacar o pesadelo de uma expansão ocidental da URSS.
O capítulo atual de tal elaboração bélica fica explicado na mínima síntese da porta-voz do Ministério Exterior chinês: "Eles (americanos e membros da Otan) já pensaram nas consequências de encurralar uma grande potência?".
Também uma pequena frase, esta de Joe Biden quase três semanas antes da invasão da Ucrânia, simboliza com perfeição a arrogância e a diplomacia dos Estados Unidos.
Refere-se ao gasoduto Rússia-Alemanha, obra de US$ 10 bilhões, pronta, de extrema necessidade para a carência alemã de gás: "Nós [os americanos] vamos acabar com ele". Não falava do interesse de um inimigo, mas das futuras condições de vida em um aliado leal.
O poder americano não tem diplomacia. Age nas divergências e objetivos externos com uma adaptação do modo "primeiro atira e depois indaga".
Inesquecível, a propósito, uma frase muito explorada no divertido Diário Carioca, sacada pelo extraordinário jornalista e depois historiador que foi José Ramos Tinhorão: "Os americanos só farão política externa quando tiverem diplomatas ingleses e redatores franceses".
Sem isso, é a força, pressionante, ameaçadora, sempre, como iniciativa e como resposta.
Os russos não são diferentes, mas, sinistros por natureza, poupam-se de usar ares angelicais e falar tanto em diplomacia sem a praticar. Ou, nos europeus, não a praticando senão entre potências.
A culpa na crise ucraniana tem muitos donos. Biden inflamou-a, no entanto, de maneira tão deliberada quanto a que acusou na ação de Putin.
No mais recente de seus bons artigos, aliás, o professor e colunista Mathias Alencastro informou que "o segundo (eu, sendo Elio Gaspari o outro criticado) imputa ao governo Biden a responsabilidade pela crise".
Isso não. Não imputo, jamais imputei e não imputaria nem a Bolsonaro. Posso assegurar meu esforço para não expor à vergonha palavras descuidadas de toda estética verbal.
Em questão secundária, observo o engano da crítica ao supor no texto o que não há nele.
Modéstia à parte, o especialista do Cebrap em relações internacionais até incorre em semelhanças com o criticado na visão do fundamental.
Os repetidos apelos do presidente da Ucrânia para que Biden moderasse sua intensa investida contra a Rússia, causa de agravamento e prejuízos econômicos da crise, fazem confirmação inquestionável da ação intoxicante de Biden.
Tamanha incontinência até fez uso indevido dos nomes da Otan e de aliados, ainda inexistindo resolução sobre a Rússia.
Biden fechou a Putin as vias de saída sem guerra (por exemplo, dando veracidade às alegadas manobras e recolhendo as tropas). Biden aplicou às suas intervenções o sentido de desafio, de ultimato.
Muitas vezes, com a inflexão e a fisionomia do ódio, contra a voz baixa e lerda do iceberg russo posto contra parede.
Contra a mesma parede, logo foram postos Biden e a Otan. Se recusadas pela Ucrânia as condições de Putin para o cessar fogo, os russos poderiam ocupar a Ucrânia e mudar o governo.
Diante do novo ultimato, à Otan e a Biden restariam duas hipóteses: deixar a Ucrânia à ocupação russa ou recuarem do objetivo de acrescentar a Ucrânia ao cerco estratégico à Rússia.
Mas nenhuma das partes enfrenta desafios da melhor maneira.
O que cabe aos de fora, como sempre, é esperar pelo resultado que nunca será bom para a humanidade.
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