Por que Salles é perigoso
THIAGO AMPARO
Ricardo Salles é perigoso porque é eficiente e porque não há instituição hoje no país que esteja disposta ou apta a pará-lo no mesmo ritmo com que queima o meio ambiente. A boiada de normas ambientais do ministro foi 12 vezes maior entre março e maio deste ano do que em 2019, número espantoso que indica a perversidade eficiente do governo na área ambiental.
A pergunta não é mais se Salles conseguirá destruir biomas inteiros ao ponto da irreversibilidade, é quando e onde. Desde janeiro até o sábado (3), o fogo consumiu 26,5% do Pantanal, uma área pouco menor do que o estado do Rio de Janeiro.
O combate às queimadas contou com o apoio crucial de ONGs e voluntários, os mesmos que Salles preferia que a boiada esmagasse. Na Amazônia, os próximos dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) devem mostrar que a cifra de devastação ultrapassou 13 mil km².
Para entender a eficiência de Salles é preciso compreender que o ministro aplica ao meio ambiente o que a literatura sobre a crise da democracia tem chamado de legalismo autocrático: flexibiliza regras ambientais, de um lado, e erode as instituições que deveriam proteger essas regras, de outro.
O ministro do Meio Ambiente é eficiente porque opera nesses dois níveis ao mesmo tempo. Primeiro, reestrutura regras ambientais no seu mérito --dificultou indenizar populações tradicionais, flexibilizou cumprimento de obrigações ambientais na pandemia, acabou com a proteção a manguezais e colocou o país no 3º lugar de assassinatos de ativistas ambientais.
Segundo, e não menos importante, Salles aparelha o Estado para corroer por dentro os órgãos que deveriam proteger o meio ambiente. Aqui, militares e inteligência são fiéis escudeiros do atraso e os bons técnicos do governo, seus reféns. O ministro aparelhou o Conselho Nacional de Meio Ambiente e escalou agentes da Abin para fiscalizar eventos abertos sobre clima na ONU, o que lembra tática do governo Dilma de aplicar a Abin contra ambientalistas e indígenas.
Salles é perigoso porque pratica um legalismo autocrático ecocida: alia corrosão das instituições ambientais com desregulação. Sem entender a natureza desse duplo movimento, Judiciário e Legislativo não poderão parar a marcha de Salles, supondo que queiram. Estrategicamente, é necessário mover a balança de interesses econômicos contra a boiada ecocida: mobilizar atores relevantes do mercado para deter Salles.
O ministro, importa frisar, não existe no vácuo. Salles não estaria onde está se não houvesse interesses econômicos e políticos por trás da pauta de desregulação ambiental. Para pará-lo, precisamos de mais ações como a pressão de fundos de investimento trilionários em carta ao Brasil, em junho deste ano, a rejeição do acordo entre Mercosul e União Europeia pelo Parlamento Europeu, e a mobilização cada vez maior por empresas que se preocupam com parâmetros socioambientais chamados de ESG.
Joe Biden, se ganhar, pode adicionar os EUA à balança de pressão contra Salles. O plano democrata inclui estímulo na casa de US$ 2 trilhões para combater a crise climática. Resta saber se, diante de interesses estratégicos no mercado brasileiro, o que veremos é o mercado parando a boiada de Salles ou tomando as suas rédeas.
Meio ambiente e clima não são pautas de direita ou de esquerda: são pautas sobre a nossa existência. Ignorá-las gera climas extremos, afeta a produção agrícola, impacta comunidades tradicionais, gera fumaça do Pantanal a São Paulo. Para usar uma imagem da Nobel de Literatura Olga Tokarczuk, se deixarmos a boiada ecocida passar, sobraremos poucos sobre os ossos dos nossos mortos.