Pelé e a glória do mundo
No aniversário de 80 anos de Pelé, amanhã, não é fácil explicar às novas gerações de fãs do esporte, cevadas pelo talento luminoso de Messi e Cristiano Ronaldo, o tamanho do sol que ele representou para o mundo.
Em parte, nada mais natural do que isso. Um provérbio latino ensina há séculos que a glória deste mundo é transitória. Mesmo assim, o caso de Pelé tem peculiaridades bem brasileiras.
É possível —mas convém estudar os autos com cuidado— que Beckenbauer tenha sido mais elegante, Garrincha mais driblador, Maradona mais habilidoso, Zidane mais calculista, Cruyff mais imprevisível, Zico melhor nas cobranças de falta.
Pode-se defender num debate —embora a polêmica seja garantida— que o Fenômeno foi mais forte nas trombadas, Roberto Carlos mais mortal no chute de longe, Messi mais limpo no acabamento das jogadas, CR7 mais letal de cabeça.
O que não está aberto à discussão é que nenhum jogador da história chegou perto de combinar tudo isso numa enciclopédia de recursos técnicos, físicos e anímicos como Pelé. Se não acredita em mim, pergunte ao Tostão.
E essa orgia de critérios esportivos —confirmada por todas as estatísticas— ainda é só um pedaço daquilo que transformou Pelé no maior mito da história do esporte mundial.
Fica faltando contar que sua carreira explodiu quando a TV ganhava o mundo, ao mesmo tempo que a luta pelos direitos civis dos negros americanos começava a mudar a paisagem social para sempre.
Mais que gênio esportivo, Pelé virou um personagem maior que a vida. Será que viriam os “15 séculos de fama” que lhe previu Andy Warhol, revisando sua boutade dos 15 minutos? A história não seria tão simples —nunca é.
Junto com o culto a Messi, sabor de sorvete do momento, ganha espaço neste século a ideia de que as proezas de Pelé se deram num tempo em que o futebol era “fácil”. Ainda que fosse verdade (não é), faltaria explicar por que era fácil só para ele.
Apesar de burra, a tese se fortalece quando combinada a certa antipatia provocada na opinião pública pelas limitações do Rei —ou de Edson, seu alter ego plebeu— como cidadão e personalidade pública.
Conservador por temperamento, Pelé atingiu seu ponto mais baixo na estima nacional quando resistiu a assumir a paternidade de uma filha, Sandra, que parecia um clone seu.
Se é inegável que ele foi uma inspiração poderosa para milhões de negros em todo o planeta, sua postura conciliadora em tais questões entra em conflito com a doutrina antirracista contemporânea.
Por outro lado, sendo um preto retinto de sucesso avassalador num país dominado pelas cepas mais covardes do racismo, passou a carreira desagradando secretamente a muita gente. Que ninguém tenha dúvida: há na relativa falta de carinho público que o cerca na velhice uma boa dosagem de vingança.
De resto, eleger ídolos e celebrá-los é uma forma que as nações encontram de se construírem —e no Brasil de hoje têm predominado os que não querem construir nada.
Obcecado pela autodestruição, o país vai despencando reto na tabela do campeonato das nações, sob qualquer critério de desenvolvimento que se use —econômico, social, humano, ambiental e, sim, esportivo também.
Em chamas, em cinzas, o Brasil quebrou o espelho. Um mito como Pelé,
símbolo do potencial que temos (tínhamos?) para construir um país
brilhante, altivo e vitorioso, não cabe muito bem aqui. Perdão, Rei.
Feliz aniversário, e obrigado por tudo.
FOLHA