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    Fragmentos de textos e imagens catadas nesta tela, capturadas desta web, varridas de jornais, revistas, livros, sons, filtradas pelos olhos e ouvidos e escorrendo pelos dedos para serem derramadas sobre as teclas... e viverem eterna e instanta neamente num logradouro digital. Desagua douro de pensa mentos.


    domingo, setembro 20, 2020

    Com incêndios do Oregon ao Pantanal, tesouros naturais, se não acabaram, não são mais como eram

     

    de Sergio Augusto

    Sempre sonhei com uma viagem de trem da Califórnia ao Canadá, cruzando aqueles cinematográficos campos e vales do Oregon, passeio que nunca fiz em minhas idas à Costa Oeste e estou certo de que jamais farei. Pela Amazônia andei duas vezes, inclusive de catamarã de Belém a Manaus, e uma vez pelo Pantanal—ao menos isso consegui fazer. Aqueles tesouros naturais, se não desapareceram, deixaram de ser como eram.

    O “inferno verde” ficou vermelho, em vários pontos virou cinza—tudo acabado e nada mais. Cruzar de carro a Transpantaneira, parando para esperar a cobra atravessar a estrada ou diminuindo a marcha para os pesados, tristonhos e lerdos tuiuiús alçarem voo em nossa pista tornaram-se imagens e sensações exclusivas da memória e assim deverão permanecer.

    Não consigo reproduzir com a precisão necessária a excruciante dor que me provocam as imagens do holocausto da fauna no cerrado, no Pantanal, na Amazônia e no Oeste americano que nos alcançam pela TV, e há uma semana parei de ver. São ecologicamente pornográficas.

    Dois meses atrás, o Oregon estava em chamas metaforicamente. As ruas de Portland tomadas por protestos antirracistas, os guardiões da lei e da ordem baixando a lenha nos manifestantes a mando do alaranjado tuiteiro da Casa Branca. O furdunço chegava pela TV e pelo celular; quem quisesse podia desligar um e outro e ir aparar a grama do jardim, espairecer, alienar-se do quebra-quebra. Aí veio o fogo de verdade. Inescapável. A grama primeiro secou e, junto com a mata e as casas, também se incendiou.

    Estávamos no Antropoceno; com a invasão dos bárbaros, entramos (ou caímos) no Trumpoceno e sua ramificação, o Bozoceno, com seus flagelos superlativos: a maior crise sanitária em um século e queimadas nunca vistas, em frequência, quantidade, extensão e danos, naturais e materiais. Parafraseando duas poesias de T. S. Eliot, na terra arrasada, homens ocos acompanham o mundo expirar, não com uma explosão, nem com um suspiro, mas com o crepitar de árvores incandescentes e gemidos de animais em agonia.

    Os dois campeões mundiais de mortes pela covid bisam a dobradinha no apocalipse ambiental. Não é coincidência; ambos morticínios tiveram a mesma origem: o negacionismo terraplanista, o não à ciência, o boicote aos alarmes sobre aquecimento global.

    Trump e seu companheiro de realidade virtual baseado em Brasília fizeram vista grossa para as duas calamidades o quanto puderam, mas acabaram tragados pelas chamas do mundo real. Alertados por cientistas, preferiram ignorá-los e desqualificá-los, e, no sufoco, jogar a culpa no inimigo mais conveniente.

    Trump increpou os chineses pela pandemia e os democratas pelas labaredas. Há dias, Joe Biden, o candidato democrata à sucessão presidencial em novembro, definiu o rival como um “climate arsonist” (incendiário climático). Bolsonaro nem precisa ficar de cócoras para caber nessa alcunha.

    No meio da semana, o jornal britânico Telegraph definiu o nosso Trump tabajara como “o homem que quebrou o Brasil”. O Telegraph é tão conservador, que nem os mais insanos bolsominions ousaram acusá-lo de comunista. “O homem que queimou o Brasil” seria mais atual, cabendo ao leitor especular se o presidente queimou tudo para não deixar provas.

    Enquanto o Telegraph queimava Bolsonaro, a ONU recomendou uma investigação internacional contra o Brasil por agressões aos Direitos Humanos e ao Meio Ambiente. A própria ONU hospeda, a partir da próxima quarta-feira, uma reunião de cúpula sobre o Meio Ambiente, na qual o secretário-geral da entidade, António Guterres, só quer a presença de países que possam oferecer mudanças significativas no combate à emissão de gases do efeito estufa e ao fogaréu em curso. Por esse critério, se rigidamente seguido, os EUA e sua maior colônia ao sul do Rio Grande não deveriam ter sido convidados. Mas foram.

    O que o governo Bolsonaro tem para mostrar na cimeira climática, além dos últimos atestados de sua incompetência? Aquele vídeo fajuto, com dados mentirosos, exaltações vangloriosas e até velhas imagens pirateadas do Greenpeace? Mas ele já foi visto e internacionalmente desautorizado pelas imagens do espetáculo de Feu et Lumière em nossas florestas, sob o alto patrocínio da agroganância e da garimpagem ilegal.

    Quando o general Hamilton Mourão assumiu a coordenação do Conselho da Amazônia, em fevereiro, os menos pessimistas pensaram: Ricardo Salles vai cair. Mas o ministro não só foi mantido como czar do ecocídio como continuou com sua ação de saúva, incentivando a burla às regulamentações ambientais com metáforas de vaqueiro (“deixa passar a boiada”), batendo boca com Leonardo Di Caprio, e relegando Mourão ao nada honroso papel de mero gestor de queimadas.

    Mais preocupado com supostos vazamentos de informações sobre desmatamento e incêndios (disponíveis na internet) do que com a implantação de uma política climática e florestal eficaz, Mourão, por enquanto, só brigou mesmo com os satélites que servem ao Inpe. Não temos um plano nacional de combate aos incêndios porque o governo não sabe, não pode e não quer fazê-lo.

    Como um pouco de humor não faz mal a ninguém, não produz mortes, fumacê tóxico, nem contamina a água com degetos químicos, um bem-humorado internauta sugeriu dia desses que se trocasse a última estrofe do Hino Nacional de “pátria amada, Brasil” para “pátria queimada, Brasil”. Não dá na métrica, mas, neste caso, o que importa é o conteúdo, não a forma.

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