Brasil nunca foi tão boçal como agora
JORGE COLI
O brasileiro não é o homem cordial. É o homem boçal.
Generalizar assim, usando o singular para definir traços coletivos de uma comunidade —o brasileiro, o americano, o latino ou o nordestino— sempre me causa mal-estar. Não há “o brasileiro” porque é impossível enfiar diferenças tão variadas de milhões num ser único, numa pessoa singular.
Tal modo de dizer universaliza e impõe as características desejadas como preponderantes. Além de descritivos, são termos normativos, ou seja, determinam comportamentos e modos de ser. Afirmar “o brasileiro gosta de futebol” decide que todos os brasileiros são obrigados a gostar de futebol. A norma traz consigo a punição: se não gosto de futebol, sou excluído por ser menos brasileiro. Ou por não ser cordial. Ou por não ser boçal.
Nenhum povo é cordial, triste ou alegre. Mas existem, sim, traços comuns construídos por conjuntos de pessoas. É importante detectá-los para não sermos pressionados por eles. Quando pertencem a um grupo que domina, tendem a se impor e a se alastrar, esmagando outros modos de ser. O desejo de reconhecimento, de se integrar, destrói as individualidades e suas diferenças.
Resumindo: o brasileiro (ou o australiano, qualquer exemplo serve) é uma construção mental predominante que dita traços comuns a todos, mesmo àqueles que não os possuem.
Por isso digo que o brasileiro é boçal. Estamos num momento em que prevalece a boçalidade como comportamento exemplar. Desde a subida de Bolsonaro e de sua gangue, ficou popular a figura do “tiozão do pavê”, que aparece no almoço do domingo e é um chato sem graça. É a faceta vulgar, a mais inofensiva do brucutu. A mais sinistra talvez seja a desse ex-sargento da Rota, acusado de 45 homicídios, que publica, orgulhoso, uma “lista da morte” no Facebook e recebe elogios.
Os boçais brotam da classe média que não hesita em exprimir em voz alta os seus valores mais baixos. Esses valores baixos vêm acompanhados por uma linguagem chula. Houve um contraste entre a vulgaridade criminosa do presidente, quando disse que “máscara é coisa de viado”, e a resposta digna e elegante de grupos LGBTs, dando à palavra viado um valor positivo e deduzindo um elogio a partir da fala insultante. Mas, da boca por onde saiu, o sentido se queria ordinário e ultrajante. É recebido assim pelo lorpa bolsonarista.
Um dos sinais exteriores mais evidentes da boçalidade geral que invade o país é o uso de palavrões.
Ok, García Márquez põe uma porção de “carajo” na boca de seu Simón Bolívar, e parece que, de fato, o general gostava de empregar nomes feios, mas sabia quando e onde. Tinha, ao que parece, uma linguagem ornada de requintes quando em presença de senhoras e em cerimônias oficiais, presidindo assembleias.
Não é hipocrisia. É adequar a linguagem ao momento.
O vídeo do conselho de ministros foi medonho pelas ideias e convicções antiéticas ali expressas, mais ainda pelo baixo calão em que foram vazadas, num coro puxado pelo presidente, campeão em “filho da puta”, “tomar no cu”, “hemorroidas”, “porra”, “foda-se”, entre outras delicadezas.
A linguagem do astrólogo e guru presidencial que mora nos Estados Unidos é de mesma natureza. Sua mixórdia pateta de pseudointelectual vem recheada de termos mimosos, que espoucam como flatulências. Creio que o sucesso desse senhor se deve em grande parte a isto: o boçal atrai o boçal.
“Fuzilar a petralhada”, “matar uns 30 mil” são formas, desta vez perigosas, de boca suja não pelas palavras, mas pelas ideias que transmitem. O “sabe com quem está falando?”, o “sou eu que pago seu salário” expõem o beócio que se autoafirma. As peruas são encarnações da boçalidade feminina. Aquele vídeo inenarrável da sra. Doria dizendo com muitas afetações de falsa elegância cara —insuportável boçalidade coberta de seda— que não se deve dar ajuda aos sem-teto porque eles gostam da rua é exemplar e antológico da cretinice arrogante.
Nos seus infortúnios de saúde, Bolsonaro teve muita sorte. Seu coronavírus serve-lhe muito bem para tirar o foco que o caso Queiroz projetou sobre ele. A facada foi importante para as eleições passadas, nas quais começou como um azarão. Ela evitou-lhe os debates nos quais ou se deixaria levar pelo jargão imundo ou ficaria travado, com consequências prejudiciais para ele.
Talvez, em nossos dias de grossura triunfante, dizer palavrão num debate seja menos grave. Em todo caso, tanto nas convicções quanto no vocabulário, nunca este país foi tão boçal como agor
a.