Fragmentos de textos e imagens catadas nesta tela, capturadas desta web, varridas de jornais, revistas, livros, sons, filtradas pelos olhos e ouvidos e escorrendo pelos dedos para serem derramadas sobre as teclas... e viverem eterna e instanta neamente num logradouro digital.
Desagua douro de pensa mentos.
sexta-feira, julho 03, 2020
'Ave Maria', cheia de desgraça
Há pouco mais de uma semana noticiou-se um daqueles episódios de restauração desastrada de pinturas antigas. Um evento recorrente que já pode ser declarado uma marca do nosso tempo.
O crime de lesa-arte e lesa-história ocorreu, como sempre, na Espanha, país que não oferece impedimento legal ao exercício amadorístico da restauração de arte. Foi lá que, em 2012, produziu-se um dos fatos estéticos mais marcantes do século.
Quem não se lembra? Cecilia Giménez, uma viúva de 83 anos, reciclou
um afresco acadêmico de Jesus ("Ecce Homo") pintado em 1930 numa igreja
de província para produzir uma máscara pós-expressionista de horror cômico.
O resultado desta vez não foi tão deliciosamente risível, mesmo
porque representou prejuízo bem maior ao patrimônio artístico. A
desgraça se abateu sobre uma Virgem Maria do pintor barroco espanhol
Bartolomé Esteban Murillo (1617-1682).
Após ser submetida, em duas tentativas, aos caprichos do restaurador
incapaz, a mulher jovem de fronte alva, bochechas rosadas e olhar
lânguido acabou por se tornar, a um olhar benevolente, uma espécie de
pintura moderna. Um genérico de Modigliani.
Até por não atingir o grotesco supremo do "Ecce Homo", o Murillo
vandalizado agora consegue ser pior. Confirmando um padrão destrutivo e
tendo menos fôlego para nos fazer rir, incomoda mais. Como uma metáfora
sinistra.
E se for esta, a destruição por inépcia, a marca mais característica
de nossa época? E se Cecilia Giménez for um gênio incompreendido que
tentou nos lançar um alerta enquanto era tempo —um alerta que, risonhos e
estúpidos, escolhemos ignorar?
A ideia me ocorreu dois dias depois de ler sobre o fim inglório da
Maria de Murillo, quando me expus ao já histórico vídeo da "Ave Maria"
da Embratur, destinado a ser uma das imagens-síntese do governo
Bolsonaro. Coincidência ou espírito do tempo?
Estou falando, claro, do trecho da live presidencial de 25 de junho
em que o presidente da Embratur, Gilson Machado Neto, entre um fole
tocado com bolsonara incompetência e uns vagidos roucos de bezerro
agônico, executa no fundo da cena (o verbo não é gratuito) a "Ave Maria"
de Gounod.
Em primeiro plano, Paulo Guedes sua gordas gotas de cartum enquanto, como bem observou o vizinho João Pereira Coutinho, deseja a morte; uma intérprete de libras melhora o original; e, no centro, Bolsonaro aguarda impaciente o fim daquela "homenagem" gozadora aos mortos da pandemia.
O efeito que a cena teve sobre mim foi o de uma epifania ao avesso.
Quando, algumas horas depois, consegui enfim me livrar dos ataques
histéricos de riso que por pouco não levaram minha mulher a quebrar a
quarentena e fugir de casa, o que sobrava era uma tristeza sem fim.
Acabou a graça. O Jesus simiesco da igreja espanhola encontrou um
rival à sua altura, e o que esse encontro ilumina é uma paisagem de
ruína estética, política e moral.
O bolsonarismo é o triunfo mais acabado —e com menos superego— de uma
tendência contemporânea que atravessa fronteiras: a exaltação do
amadorismo inepto, da tosqueira de raiz, do trogloditismo "sincero" em
contraponto à razão, à ciência, à arte, à justiça.
Boçais voluntariosos que mal conseguem amarrar os sapatos se declaram
restauradores de supostas glórias e saem por aí aos urros: "Make Brazil
great again!".
Em seu rastro, só destruição. Quem reparar bem vai ver que aquele "Ecce Homo" é o Bolsonaro cuspido e escarrado.