'Ave Maria', cheia de desgraça
O crime de lesa-arte e lesa-história ocorreu, como sempre, na Espanha, país que não oferece impedimento legal ao exercício amadorístico da restauração de arte. Foi lá que, em 2012, produziu-se um dos fatos estéticos mais marcantes do século.
Quem não se lembra? Cecilia Giménez, uma viúva de 83 anos, reciclou um afresco acadêmico de Jesus ("Ecce Homo") pintado em 1930 numa igreja de província para produzir uma máscara pós-expressionista de horror cômico.
Após ser submetida, em duas tentativas, aos caprichos do restaurador incapaz, a mulher jovem de fronte alva, bochechas rosadas e olhar lânguido acabou por se tornar, a um olhar benevolente, uma espécie de pintura moderna. Um genérico de Modigliani.
Até por não atingir o grotesco supremo do "Ecce Homo", o Murillo vandalizado agora consegue ser pior. Confirmando um padrão destrutivo e tendo menos fôlego para nos fazer rir, incomoda mais. Como uma metáfora sinistra.
E se for esta, a destruição por inépcia, a marca mais característica de nossa época? E se Cecilia Giménez for um gênio incompreendido que tentou nos lançar um alerta enquanto era tempo —um alerta que, risonhos e estúpidos, escolhemos ignorar?
A ideia me ocorreu dois dias depois de ler sobre o fim inglório da Maria de Murillo, quando me expus ao já histórico vídeo da "Ave Maria" da Embratur, destinado a ser uma das imagens-síntese do governo Bolsonaro. Coincidência ou espírito do tempo?
Estou falando, claro, do trecho da live presidencial de 25 de junho em que o presidente da Embratur, Gilson Machado Neto, entre um fole tocado com bolsonara incompetência e uns vagidos roucos de bezerro agônico, executa no fundo da cena (o verbo não é gratuito) a "Ave Maria" de Gounod.
Em primeiro plano, Paulo Guedes sua gordas gotas de cartum enquanto, como bem observou o vizinho João Pereira Coutinho, deseja a morte; uma intérprete de libras melhora o original; e, no centro, Bolsonaro aguarda impaciente o fim daquela "homenagem" gozadora aos mortos da pandemia.
O efeito que a cena teve sobre mim foi o de uma epifania ao avesso. Quando, algumas horas depois, consegui enfim me livrar dos ataques histéricos de riso que por pouco não levaram minha mulher a quebrar a quarentena e fugir de casa, o que sobrava era uma tristeza sem fim.
Acabou a graça. O Jesus simiesco da igreja espanhola encontrou um rival à sua altura, e o que esse encontro ilumina é uma paisagem de ruína estética, política e moral.
O bolsonarismo é o triunfo mais acabado —e com menos superego— de uma tendência contemporânea que atravessa fronteiras: a exaltação do amadorismo inepto, da tosqueira de raiz, do trogloditismo "sincero" em contraponto à razão, à ciência, à arte, à justiça.
Boçais voluntariosos que mal conseguem amarrar os sapatos se declaram restauradores de supostas glórias e saem por aí aos urros: "Make Brazil great again!".
Em seu rastro, só destruição. Quem reparar bem vai ver que aquele "Ecce Homo" é o Bolsonaro cuspido e escarrado.
SERGIO RODRIGUES