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    quarta-feira, julho 08, 2020

    AS RUÍNAS MAIS BELAS




    Carol Bensimon

    No tempo em que todos os hotéis estavam funcionando, Edgar trabalhava como limpador de piscinas. Ia de um lugar para outro na kombi azul caiçara, Recanto das Hortênsias, Pousada das Montanhas, Hotel Serrano, Pousada Edelweiss. As coisas mais bonitas que já ouvira enquanto limpava piscinas tinham saído da boca das crianças: se o trabalho dele era salvar insetos – salva-vidas de formiga! –, se ele estava juntando folhas secas para sua coleção, se ele não era grande demais para brincar com uma peneira.
    O vírus fechou os hotéis. Os gerentes mandaram mensagens de voz dizendo que não precisariam dos serviços de Edgar por algumas semanas e encerravam sempre com palavras positivas, mas ele não era nem tão otimista, nem tão bobo. Por três noites seguidas, ficou rodando pela cidade. Conseguia enxergar claramente a ruína de tudo. Tinha conhecido o lugar sem o parque temático da fábrica de chocolates, sem o teleférico, sem os festivais. Conseguia imaginar o escuro. Conseguia ouvir os grilos e ver as trepadeiras escalando vagarosamente as colunas de concreto. Sua referência era o cassino abandonado, multiplicado por mil, dois mil. Quando jovem, quantas vezes tinha dormido naqueles cômodos erguidos pela metade? Só precisava de uma garrafa de Velho Barreiro e de um cobertor. Edgar nunca achou difícil imaginar o fracasso.
    O turismo foi a primeira coisa a parecer supérflua na nova configuração do mundo. Os hotéis reabriram como se fossem reféns tentando sorrir ao ver os primeiros raios de luz; balões dourados na entrada, música alta, palhaços sobre pernas de pau, a alegria falsa que tenta mascarar o trauma. Só que todo mundo estava quebrado. Além disso, agora as pessoas sabiam do que antes era invisível; se por um acaso fossem parar num quarto de hotel, respondendo ao velho desejo por lugares distantes e pela quebra de rotina que, por sorte, poderia ser parcelado em até seis vezes, era como se vissem os espectros de todos os que já tinham passado por lá. Um quarto superpovoado. Um museu de saliva, digitais, células mortas. Quantos outros hóspedes tinham tocado naqueles mesmos botões do controle remoto?
    As piscinas não reabriram. Colaram cartazes de “temporiamente desativada”. Cartazes de “pensando em sua saúde e sua segurança”. Em um único dia, Edgar cobriu doze delas. Às margens da última piscina, deixou uma abelha secando no sol, as asas ainda coladas no corpo frágil, o abdômen listrado pulsando. Entrou na kombi com tudo que tinha e desceu a serra na direção da capital.
    Trabalhava agora nas casas que ficavam perto do grande lago. Usava luvas e máscara. Ninguém chegava perto dele. Acionavam o porteiro eletrônico e sequer apareciam no jardim para perguntar qualquer coisa ou conferir o que ele estava fazendo. Um copo d’água seria demais. As pessoas com dinheiro ainda tinham o privilégio de ter medo, então queriam todo o lazer dentro dos limites da casa. Algumas dessas construções possuíam muitas décadas de vida, o que se media pelo tamanho de tudo. Parecia que os sonhos, antigamente, tinham mais espaço para onde crescer.
    De qualquer maneira, enquanto jogava cloro granulado nas piscinas ou instalava aquecedores solares nos telhados das casas, Edgar achava fácil imaginar o abandono e o vazio do que via ao seu redor, porque tanta gente lá fora, em desespero, um dia ia sem dúvida derrubar os portões, quebrar as janelas e pegar tudo que precisasse realmente e tudo que achasse que precisava, como estava acontecendo em outros lugares chamados Quito, La Paz, Buenos Aires, Los Angeles. Ele tinha ficado impressionado sobretudo com as imagens que viu na televisão de um saque em uma loja de – parecia piada – televisões! Mas também viu casas pegando fogo em lugares que agora não lembrava o nome, e gente saindo com carrinhos cheios de roupas recém lavadas que pertenciam a outras pessoas. Além desse tipo de notícia cuja trilha sonora era sempre a das sirenes e das coisas explodindo – ali, ele ainda ouvia o canto dos passarinhos –, havia as notícias sobre uma segunda onda do vírus, uma terceira onda, uma quarta onda. Sobre uma coisa, podia ter certeza: as piscinas de azulejo seriam ruínas mais bonitas que as de fibra de vidro.
    Às vezes, de forma tão imprevisível a ponto de causar um leve arrepio, uma menina ou um menino aparecia atrás de uma janela gradeada. As coisas mais sombrias que Edgar já ouvira enquanto limpava piscinas tinham saído da boca das crianças: se aquele pó que ele levava no balde matava o vírus, se o dragão inflável ia ficar bem depois que Edgar tinha tocado nele, se ele podia contar um pouquinho sobre como era a vida lá fora.

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