Chegamos ao fundo do poço moral e ficamos acostumados ao lodo
JOEL PINHEIRO DA FONSECA
"Cidadão, não; engenheiro civil, formado, melhor do que você." Um total
de zero pessoas se surpreendeu ao descobrir que a mulher que disse essa
frase (e também o clássico "a gente paga você, filho") —uma carteirada
em favor de seu marido— a um fiscal da Prefeitura do Rio é uma
bolsonarista fanática e notória pela falta de educação nas redes
sociais.
Seu marido —o engenheiro civil, que se descreve como conservador e
anti-PT— recebeu auxílio emergencial. Novamente, zero surpresa.
Sem máscara, em meio a aglomeração desnecessária e prontos a esfregar
seus pequenos poderes na cara de qualquer um que represente um obstáculo
à fruição completa de seus apetites mais egoístas.
É esse espírito que mantém o apoio a Bolsonaro, mais do que o
lavajatismo (que já pulou fora), o sentimento "antiestablishment"
(Arthur Lira e Kassab que o digam) e o liberalismo econômico (que
decerto chegará "na semana que vem").
O Brasil nunca foi muito diferente disso, mas num passado não tão
distante o vício ainda pagava aquele tributo mínimo à virtude, a
hipocrisia. Hoje ele pode ser escancarado não só sem vergonha nenhuma,
mas até com orgulho: é legal pisar em cima de quem está abaixo.
Nas previsões otimistas, um tanto ingênuas, feitas no início da
pandemia, sairíamos dessa crise mais solidários, purificados pelo
esforço em prol do bem comum. Nada disso: sairemos mais
dessensibilizados, acostumados a mostras outrora chocantes de descaso e
oportunismo.
A pandemia deixou-nos mais descrentes da possibilidade de uma liderança
capaz de unir o país. Motivos para se indignar não faltam.
Falta um sentido para a indignação; qualquer perspectiva de mudança.
Bolsonaro vetou a exigência de máscara em templos religiosos e
comércios. Essa decisão causará mortes. Mas é justamente o que esperamos
dele, ninguém se surpreende mais.
Usar uma simples máscara de pano por alguns minutos para evitar a morte
alheia é um sacrifício pesado demais para quem nos governa, e já sabemos
que não mudarão.
Idem para a vacância na Saúde e na Educação. Kassab nos garante que, de
agora em diante, Bolsonaro não criará mais conflitos. Sem dúvida, o
fisiologismo do centrão é menos nocivo do que o projeto de poder
tirânico de uma seita de olavistas alucinados.
Mas a seita —que inclui os filhos do presidente— não cessa de atacar
qualquer quadro minimamente técnico que ouse participar do governo. É,
na prática, impossível que um profissional competente assuma qualquer
pasta. Bolsonaro não cairá —tem apoio político para ficar onde está. Mas
tampouco vislumbra-se qualquer melhora.
Sobram, é claro, as promessas de Guedes, que fazem a alegria dos
traders. O culto ao egoísmo como virtude, a vitória dos mais espertos no
mercado financeiro; não é à toa que estejam otimistas. Ninguém acredita
quando ele promete quatro privatizações para daqui "60 ou 90 dias". Não
fez no ano passado, quando tudo lhe era favorável. Por que fará agora,
quando os ventos sopram contra? O importante é ter algum pretexto para
seguir agarrado a um egoísmo autocomplacente, ainda que sem resultado
algum —e posar de cidadão de bem e cristão.
Perdemos, por pura inépcia e voluntarismo, todas as guerras possíveis:
da saúde, da educação, do combate à corrupção, da cidadania. Chegamos ao
fundo do poço moral e, sem nenhuma escada visível, acostumamo-nos ao
lodo. Alunos sem aula, mil mortes diárias, baixaria no Planalto, fake
news no WhatsApp, ódio e desrespeito nas ruas: mais um dia normal no
Brasil de Bolsonaro.