Um fio liga Quincas Borba a quem não vê nada de mais na suspeição de um juiz
" Quincas Borba concebeu um “sistema de filosofia para arruinar todos os demais sistemas” (parece que reconhecemos algo aqui): como no fundo somos todos partes de uma matriz comum (“humanitas”), as desgraças de uns se justificariam pelo bem dos outros. As injustiças e os flagelos a que alguns estão submetidos seriam meros “equívocos do entendimento”.
“Nasceu esse africano, cresceu, foi vendido; um navio o trouxe (...) com o único fim de dar mate ao meu apetite. (...) Pangloss (...) não era tão tolo como pintou Voltaire”, insiste Quincas Borba.
O “humanitismo” é o otimismo repaginado dos escravocratas, Pangloss sem a ironia de Voltaire, transportado para a nossa pobreza de espírito: o escravo não sofre propriamente; vive o prazer vicário do senhor. O deleite deste justifica o sacrifício daquele, porque no final das contas são “movimentos externos da (mesma) substância interior”.
A coisa fica ainda pior com o arremate de uma certa “teoria do benefício”, segundo a qual apenas o beneficiador consegue reter o sentido do seu ato. O beneficiado, uma vez terminada sua privação, volta ao estado anterior de indiferença. Conclusão: não vale a pena perder tempo com mal-agradecidos. Arremedo de filosofia, silogismo à brasileira, o “humanitismo” supõe que a igualdade seja de natureza metafísica, de onde conclui que as desigualdades reais são mera aparência.
Não é difícil seguir o fio que liga o raciocínio de Quincas Borba ao de quem não vê nada de mais na suspeição de um juiz. É a mesma lógica semidemente, agora na convicção de que a letra da Justiça pode valer como ideia, em algum lugar “mais restrito”, mas não aqui, terra de arbítrio, sofismas e inversões, onde as ideias são aceitas “por razões que elas próprias não podem aceitar” (Schwarz)."
mis no artigo de Bernardo Carvalho
Democracia Política e novo Reformismo: Bernardo Carvalho: Os homens fora do lugar