O TEMPO E O CARTUM
MIGUEL PAIVA
Um dia antes do esfaqueamento de Jair Bolsonaro mandei para este jornal uma charge que acabou, por razões óbvias, não sendo publicada. Apesar de polêmico e nebuloso o esfaqueamento foi confirmado por todas as pessoas envolvidas, inclusive a imprensa. Minha charge mostrava um pai simpatizante dizendo que "filho dele jamais iria brincar de boneca" e o filho assim meio de costas, brincando com um boneco de vudú, a cara do pai, e todo espetado por agulhas. Feito antes do fato era muita coincidência e, se publicado, teria um efeito no mínimo de mau gosto. Mas o poder clarividente do cartum se manifestava. O desenho de humor vai no avesso das coisas, busca uma verdade oculta e tenta adivinhar o que o leitor quer ver.
Uma outra vez, quando ainda morava em Milão e o Nixon estava por cair fiz um cartum para a revista Pardon da Alemanha que mostrava um sujeito numa agencia de empregos falando de suas qualidade para tentar uma vaga no mercado. Era o Nixon e o sujeito da agência olhava para ele desconfiado. Dias depois ele renunciou por conta do escândalo Watergate. São muitos casos parecidos. Quando Tancredo estava por entregar os pontos publiquei no JB um desenho que mostrava o Cristo Redentor pedindo carona a um avião da Ponte Aérea que ia pra São Paulo. Não precisa estar ligado a fatos históricos. O cartum precisa estar ligado ao inconsciente coletivo.
Uma das histórias da Radical Chic que mais sucesso faz é a do médico que manda ela cortar tudo para emagrecer, frituras, doces, bebidas... e ela completa, "E os pulsos, doutor". Nada mais preciso no que diz respeito ao pensamento de quem vai iniciar uma dieta. Foi tiro e queda. Até hoje o desenho é lembrado.
Talvez o mais feliz nesse aspecto que eu tenha feito foi o da Constituição. Republiquei ele aqui neste jornal no dia das eleições, no segundo turno. É, dos meus cartuns, o mais publicado pelos livros didáticos. Mostra uma família pobre sentada num meio-fio. O pai lê a Constituição, "Todo brasileiro tem direito à moradia" e a mãe pede : "Lê agora aquele pedaço bonito que fala de comida, saúde..." Nada mais oportuno e , infelizmente, atual. Mas o cartum é isso. Ele vai lá na frente correndo riscos de dar com os burros n'água mas, se acerta, é uma maravilha.
Governos autoritários sempre tiveram medo de cartuns. Não entendiam muito bem mas temiam. Quando a ditadura acabou pensamos que as ideias iriam desaparecer, que a democracia não favoreceria o cartum. Não foi verdade e continua não sendo. Material sempre vai existir e possibilidades de mudanças de rumo mesmo na democracia são claras. Basta ver agora. O cartum tem que prever também essas variantes na sua existência. O tempo é cruel e implacável.
O melhor cartum que vi na vida e considero uma obra prima é do grande cartunista argentino Quino com quem convivi em Milão. O cartum mostra uma senhor entrando numa casa muito antiga onde existe um espelho enorme. No espelho vemos a imagem refletida. O senhor já colocou o chapéu no cabide mas no espelho ele ainda está fazendo o movimento de tirar da cabeça. No espanto do senhor diante da lentidão da imagem no espelho o empregado que o recebe diz: " É que o espelho é muito antigo". Podia ser um conto de Jorge Luís Borges ou de Cortázar. Mas era um cartum do Quino. E que 2019 venha com a mesma lentidão do espelho do cartum para que leve mais tempo para cairmos na real.