GERAÇÃO HQ
Fato raro e louvável: um dos principais veiculos da imprensa brasileira abre páginas e páginas para falar de quadrinhistas brasileiros.
Matéria de capa da Revista dominical de O Globo
com a chamada
Conheça a novíssima geração de desenhistas que vem agitando o mercado de histórias em quadrinhos no país.
A matéria realmente é ótima, informativa, muito ilustrada, e pegaram alguns nomes quentes da rapaziada nova. Vale a pena leer tudo, transcrevo aqui para quem não tem assinatura do Globo Digital (quem tem, e quiser ler lá, clique aqui)
Auto-retrato de Rafael Grampá
Geração HQ
Impulsionada pela internet, uma safra de jovens desenhistas vem renovando as histórias em quadrinhos de norte a sul do país
Como qualquer garoto comum, o gaúcho Rafael Grampá passava horas lendo histórias em quadrinhos. Mas, ao contrário da maioria dos meninos, não largou as tirinhas assim que cresceu. Continuou de olho nelas e descobriu que o desenho era uma ótima forma de contar uma história.
Qualquer uma. De bichinhos ou super-heróis, eróticas ou de ficção científica, de personagens famosos ou de gente como a gente. Aos 30 anos, Grampá é hoje um dos mais promissores desenhistas de sua geração. Concorre ao prêmio americano Eisner Awards, uma espécie de Oscar dos quadrinhos, lança seu primeiro livro solo no mês que vem e vai estrear no cinema, como desenhista de produção de “O dobro de cinco”, adaptação de uma HQ de Lourenço Mutarelli.
O desenhista gaúcho está longe de ser um caso isolado. Ele faz parte de uma galera que vem renovando os quadrinhos no Brasil. Uma geração entre 25 e 30 e poucos anos, espalhada pelo país inteiro e que produz intensamente.
Graças à internet, quem antes penava para publicar um trabalho hoje divulga seus traços em sites, blogs, fotologs e afins. Lançar um fanzine — forma como todo desenhista independente costuma começar — também ficou mais fácil. A qualidade da reprodução melhorou e os custos caíram. Somado a tudo isso, as editoras parecem cada vez mais interessadas no segmento e os quadrinhos ganham espaço nas livrarias, ao lado de clássicos da literatura.
— Vivemos uma era de ouro. Trabalho com isso há mais de 20 anos e nunca vi tão bons autores como agora — diz Rogério de Campos, diretor editorial da Conrad, uma das editoras que mais lançam HQs. — Os quadrinhos são o novo rock’n’roll. Nos anos 80, todo mundo queria ter uma banda de rock no Brasil. Depois, todo mundo queria ser DJ, lembra? Agora é o momento dos quadrinhos.
Essa novíssima geração surge no rastro da bem-sucedida dupla Gabriel Bá e Fábio Moon. Os gêmeos paulistanos de 32 anos começaram nos quadrinhos em 1997, com o fanzine “10 pãezinhos”.
Rapidamente pularam de promessa a artistas consagrados, colecionando prêmios e publicando livros, incluindo uma adaptação de “O alienista”, de Machado de Assis. Somente neste ano, eles disputam o Eisner Awards em três categorias.
E Bá concorre ao prêmio americano Harvey Awards como melhor desenhista por “The umbrella academy”, história publicada nos Estados Unidos, com roteiro de Gerard Way, vocalista da banda My Chemical Romance, de Nova Jersey.
Diante do cenário atual, Gabriel Bá não tem dúvidas: — Virou cool fazer quadrinhos — ele acha graça. — Mas as pessoas esquecem que, por trás disso, tem muito trabalho no fim de semana, muita madrugada desenhando — avisa.
No Eisner Awards deste ano, os gêmeos disputam, junto com Grampá, a categoria de melhor antologia, pelo livro “5”, feito a dez mãos.
Além de Gabriel Bá, Fábio Moon e do desenhista gaúcho, também colaboraram a americana Becky Cloonan e o grego Vasilis Lolos. Sinal dos tempos, Grampá ficou sabendo da indicação pelo MSN.
Levou o maior susto.
Nascido em Pelotas (“mas só fiquei lá por quatro anos, hein!”, ele brinca), Rafael Grampá desenhava bem desde menino. Seu primeiro trabalho encomendado foi a decoração de uma festinha infantil de um amigo de escola.
Encomenda aceita, como o tema era “fazenda”, ele desenhou cavalos e galinhas à exaustão. Aos 12 anos, fazia estampas para camisetas e, aos 14, ilustrava livros de auto-ajuda. Mais tarde, na falta de uma faculdade de design em Porto Alegre, acabou virando autodidata. Trabalhou numa produtora de cinema, fazendo animação, e, depois, foi ser diretor de arte da emissora de TV RBS. Ainda acha graça de quando passou seis dias e seis noites sem dormir dirigindo o clipe “As cores bonitas”, da banda conterrânea Bidê ou Balde.
Foi sua vitrine. Indicado ao prêmio VMB da MTV pelo clipe, Grampá faturou um convite para trabalhar como designer numa importante produtora de São Paulo. Mudouse para lá em 2004. Trabalhou feito louco e, depois de três anos e um pé de meia que permitisse ousadias do tipo, chutou o balde.
— Minha idéia era me largar, fazer uma coisa mais autoral. Agora está começando a rolar.
No fim do mês que vem, início de agosto, Grampá lança, pela editora Desiderata, o álbum “Mesmo delivery”, um road-thriller em quadrinhos que conta a história de um caminhoneiro transportando uma carga misteriosa, que não deve ser aberta. As referências vão de seriados antigos ao cinema de Quentin Tarantino e Sam Peckinpah.
Antes mesmo de chegar às livrarias, a história já teve seus direitos vendidos ao produtor Rodrigo Teixeira, que planeja levá-la ao cinema.
Amigo do gaúcho, o paulistano Rafael Coutinho, de 28 anos, começou a desenhar justamente para fazer amigos.
Quando era pequeno, morou em várias cidades, incluindo o Rio e Baltimore, nos Estados Unidos. O traço era um jeito de se aproximar dos colegas na escola. Quando cresceu, Rafael foi estudar artes plásticas na Unesp e logo se viu fazendo um monte de coisas, como pintura, gravura, escultura, cenografia, animação, cinema e design. Expôs fora do Brasil, participou de várias edições do Anima Mundi, produziu clipes para o rapper Xis e a banda Pato Fu, dirigiu o curta “Aquele cara”.
Os quadrinhos surgiram no meio de tudo isso, quase como um hobby. Há dois anos, Rafael integrou a coletânea “Bang Bang”, lançada pela Devir, com histórias de faroeste de autores brasileiros e americanos. No ano passado, publicou sua versão de “Branca de neve” na antologia “Irmãos Grimm em quadrinhos”, da Desiderata.
— Ele é, sem dúvida, um dos melhores da nova geração — assina embaixo o gêmeo Gabriel Bá.
Foram anos de convivência até Gabriel descobrir que Rafael tem quadrinho no DNA. Ele é filho do desenhista Laerte, que estourou nos anos 80, publicando nas clássicas revistas “Chiclete com banana” e “Circo”, onde nasceu seu trabalho mais conhecido, os Piratas do Tietê.
Além de trocar revistas com o pai, Rafael organizou no ano passado o livro “Laertevisão — Coisas que não esqueci”, um conjunto de memórias gráficas de Laerte.
Lançada pela editora Conrad, a publicação foi indicada ao HQ Mix, a maior premiação do gênero no Brasil, que acontece no dia 23 de julho, em São Paulo. Concorre a melhor edição especial, disputando com o “Grimm em quadrinhos” e “O alienista”.
— O quadrinho brasileiro dos anos 80 era subversivo, agressivo, pornográfico. Nos anos 90 foi aquela crise, né? Muita gente migrou para a ilustração e a publicidade. O quadrinho atual vai por outros caminhos — compara Rafael. — Hoje os desenhistas bebem no design, na animação, na TV, na internet. O quadrinho se aproximou mais da vida das pessoas.
Na hora de criar suas histórias, Rafael vai buscar referências em toda parte, no cinema independente, na literatura contemporânea brasileira, na arte de rua e até em revistas de moda, como uma “Vogue” que lhe caiu nas mãos por causa de sua mulher, a estilista Marina Pontieri.
Há algum tempo, ele anda louco para criar um quadrinho com o ex-presidente Collor, na pele de um empresário yuppie. Mas esse vai ter que esperar. No momento, ele trabalha num romance gráfico junto com o escritor Daniel Galera. A parceria faz parte de um projeto criado pelo escritor Joca Terron, um apaixonado por quadrinhos.
A mistura de referências que aparece no trabalho de Rafael também é a base da criação do paraibano Shiko, nascido há 32 anos, em Patos, a quase 500km de João Pessoa.
Só que de um jeito todo próprio. Shiko se iniciou na literatura através do cordel, que lia na casa dos avós, para um tio-avô que era cego.
— Também lia muito quadrinho, mas não gostava dos super-heróis. Preferia o Conan, aquele anti-herói, meio bandido, que bebia e andava com prostitutas — ele lembra, entre risos.
Em Patos, Shiko já tinha sua turma de desenhistas. Era o piorzinho deles, reconhece.
Em 1992, quando se mudou para Brasília para cursar o Ensino Médio, teve a sorte de descolar um estágio num estúdio de desenho. Foi seu divisor de águas.
— Eles tinham vários livros de quadrinhos. Foi lá que conheci o Will Eisner, e aquilo caiu como uma bomba de informação — diz, referindose ao cultuado desenhista americano, morto em 2005.
Quando voltou para Patos, um ano depois, Shiko era outro. Logo começou a produzir seu “Marginalzine”, com papel, caneta, xerox, cola e tesoura. Vivendo em João Pessoa e com o fanzine já em sua décima edição, ele continua trabalhando assim. Jura que não consegue se divertir no computador.
Sem fazer distinção entre literatura e quadrinhos, Shiko adora criar suas versões para textos literários, de Augusto dos Anjos a Albert Camus. É quadrinista, pintor, grafiteiro, animador etc. Principalmente etc. Recentemente, trabalhou na animação do clipe “Lelé”, do Chico Correia & ElectronicBand, e co-roteirizou o curta “Cão sedento”, com o diretor Bruno de Sales, adaptando uma HQ sua. Em 2007, lançou o elogiado álbum “Blue note”, sobre um homem que deixa sua cidade e mergulha num mundo de experiências.
O mundo de Shiko.
— Gosto de um universo mais marginal, de Charles Bukowski e Pedro Juan Gutiérrez, do que não é fantástico, mas também não é documental, da crônica urbana mesmo, com histórias de ladrões e putas — explica-se.
Por “Blue note”, Shiko está disputando o Troféu HQ Mix deste ano como desenhista revelação. Briga com quadrinistas de vários cantos do país, incluindo o carioca Vinicius Mitchell, que concorre por uma série publicada aqui na Revista O GLOBO, no ano passado, e o paulista Jozz, de 25 anos, que disputa com seu “Zine Royale”. Nascido em Jaú e formado em design gráfico, Jozz mergulhou pesado nos quadrinhos ainda na faculdade. Seu trabalho de conclusão de curso foi uma HQ, o “Circo de Lucca”, que acabou lançada pela editora Devir.
O livro conta a história de um estudante de desenho que tem uma crise criativa diante da página em branco. Ao arriscar diferentes formas de desenhar, ele vai discutindo o próprio processo de se fazer quadrinhos. Um questionamento que vive na cabeça de Jozz.
— O que eu mais gosto de fazer são os quadrinhos, mas o que paga as contas, por enquanto, são as ilustrações, animações e projetos gráficos — ele diz.
Nos últimos anos, Jozz colaborou muito com o cinema.
Foi assistente de direção e montador do curta “Manual para atropelar cachorro”, de Rafael Primo, premiado no Festival de Gramado, em 2006, e trabalhou no longametragem “Garoto cósmico”, de Alê Abreu, que estreou este ano. Ele faz parte do coletivo Quarto Mundo, que reúne desenhistas de todo o país na internet. São cerca de 80 nomes de Belém ao Rio Grande do Sul, que trocam suas revistas independentes, participam juntos de eventos e, muitos deles, usam até a mesma gráfica, em Minas. No estilo “a união faz a força”.
Como Jozz, o carioca Fábio Lyra lamenta não viver de quadrinhos no Brasil. Aos 31 anos, Lyra, que transformou o quarto num estúdio, e dorme num sofá na sala, trabalha como ilustrador para várias publicações, faz capa de livro, flyer de festa, encarte de CD. E quadrinhos cheios de referências pop. No mês que vem, ele lança seu primeiro álbum solo, “Menina infinito”, pela Desiderata, com direito a show e festa no sebo Baratos da Ribeiro, em Copacabana.
Nada mais apropriado. O sebo é cenário de vários momentos da história. Situações do dia-a-dia, notícias de jornal, uma imagem da TV, tudo vai para as páginas de Lyra.
— Não tenho muito saco para super-herói — ele diz.
Hoje ilustrador freelancer de várias publicações, assim como Lyra, Gabriel Góes, de 28 anos, morador de Brasília, trabalhou por seis anos no “Correio Braziliense”. Fazia, entre outros trabalhos, as reconstituições de crimes publicadas no jornal.
— Era o que havia de mais próximo dos quadrinhos — diz ele.
Há dois anos, o desenhista deixou o jornal e veio para o Rio, disposto a trocar idéias e experimentar coisas novas.
Acabou nascendo aí a parceria com Arnaldo Branco na graphic novel baseada em “O beijo no asfalto”, de Nelson Rodrigues, que foi lançada pela Editora Nova Fronteira. Coberta de elogios.
De volta a Brasília, Gabriel produziu, produziu e, no início deste ano, lançou o fanzine “S&V”, pela editora Kingdom Comics. Agora, trabalha em histórias de terror, um de seus gêneros favoritos.
— São várias histórias, meio “Contos da cripta” e “Além da imaginação” — diz o desenhista, fã de filmes de ficção científica e terror dos anos 60, além de filmes B mais esquisitões. — Também gosto de desenhos animados e de quadrinhos eróticos.
Apesar de não haver dados sobre o crescimento do setor no país, os quadrinhos parecem uma aposta tão promissora que, nos últimos anos, até a vida de Buda ganhou sua versão em HQ. A obra, de Osamu Tezuka, em 14 volumes, foi publicada durante um ano pela editora Conrad. Os dois primeiros tomos tiveram até que ser reeditados.
Ao longo de 2008, várias adaptações literárias prometem inundar o mercado, enquanto os quadrinhos vão ganhando mais e mais espaço nas livrarias.
— Pena que o número de leitores não cresça na mesma proporção — lamenta o gêmeo Gabriel Bá.
Em São Paulo, Gualberto Costa, o criador do prêmio HQ Mix, abriu há sete meses uma livraria especializada no segmento. Já tem uma estante de 2,5m de altura por 4m de largura recheada de produções independentes. O ritmo é tão intenso que é difícil passar uma semana sem a chegada de uma nova publicação nacional.
— Há gente no Brasil produzindo quadrinhos de todos os gêneros, como acontece com o cinema e a literatura — comemora o desenhista S. Lobo, editor de quadrinhos da Desiderata.
A matéria continua em posts abaixo.
Lembrem de clicar na imagens para ve-las em tamanho maior.
Marcadores: quadrinhos