HÁ VINTE ANOS EU VIVIA EM GOTHAM CITY
FAZIA UM CÉU ALARANJADO
EM GOTHAM CITY
Há vinte anos, neste dia, eu estava no comicio das Diretas-Já.
Foi um dos momentos mais comoventes da História do Brasil.
E um dos momentos mais impactantes da minha vida.
Se eu estivesse no meio do povo, do mar de gente, que transbordava pela Presidente Vargas, já seria uma descarga de emoções. Eu que vivera a ditadura, que tomara porrada da ditadura, que tive amores arrancados de mim pela repressão, assistiria da geral ao marco da derrocada final dessa ditadura. E naquele momento nada reprimiria o que eu sentia.
Mas, melhor ainda, assisti a tudo de camarote. Sim, eu estava no palanque da Candelária no Comício das Diretas-Já em 1984. Dali eu via aquela multidão, uma massa de seres humanos que se estendia a perder de vista. Parecia efeito de filme épico. O tapete de pessoas se desenrolava da Candelária até a altura da Central compactamente. E ia além, a gente via o dia se acabando lá pelo viaduto da Cidade Nova, e tinha gente descendo pelo viaduto pra se juntar ao rabinho do comício a quilômetros de distância.
À minha frente, Brizola, Tancredo, Ulysses, FH, politicos discursavam e incitavam a multidão. Do meu lado, às lágrimas, Neuma Quadros. A Dona Neuma do Pasquim. Na célebre cena em que todos os líderes do comício dão-se as mãos e erguem os braços, eu, debruçado num parapeito, fotografava o instante.
Nao consigo medir se eu era mais radical naquela época, mais jovem, ou, ranzinza, fui ficando mais radical com o tempo. Mas até o momento em que cheguei ali e descortinei a massa, eu era contra o comício das Diretas.
Claro, era a favor totalmente de eleições diretas, mas não curtia muito a Campanha.
Achava que não tinha a ver aliar-se tanto a figuras como Tancredo Neves.
Ou mesmo o Sr. Diretas, Ulysses Guimarães. Sabia ser necessária uma frente ampla naquele momento mas achava que Tancredo e sua turma acabaria por desvirtuar o rumo do movimento para seus próprios fins. Como de fato aconteceu.
Mas ali, nao era mais um acontecimento politico. Era algo que pulsava com força e em toda a sua plenitude. Uma descarga de energia humana.
Quando Sobral Pinto ia se aproximando do microfone
velhinho, velhinho, fraquinho.
os seus sonhos triturados pelo Mamute Militar
um silencio foi se avolumando por toda a extensão da Avenida Presidente Vargas.
Sobral Pinto falou estas palavras:
Peço licença para falar. Quero falar à Nação Brasileira.
Foi um instante inteiramente spooky. Havia cerca de um milhão de pessoas ali e baixou um silencio sólido, pesado, e ao mesmo tempo transcendente. Parecia que todos prendiam a respiração. O Brasil prendeu a respiração. Todo o correr da História parou. E Sobral pegou um papel e leu o Artigo Primeiro da Constituição Brasileira:
Todo poder emana do povo e em seu nome é exercido.
E a explosão DI-RE-TAS-JÁ! DI-RE-TAS-JA!
Procurei por meu crachá de acesso ao palanque pra scanear e publicar neste blog. Abri caixas e caixas e não encontrei, deve estar em algum lugar da minha mudança de casa. Procurei as fotos, preto& branco, tiradas com minha velha Pentax, asa 400 depois 800, porque até começar o comício escurecia...
e também não achei.
O que sobrou daquela emoçao toda pra ser encontrada vinte anos depois?
Procurei pelo Presidente eleito pelo povo após a ditadura e ele nunca existiu. Duas semanas depois do Grande Comício a votação no Congresso derrotou as Diretas. Tancredo morreu antes de tomar posse. Ulysses foi pro fundo do mar. Dona Neuma estrepou-se numa ferrugem e morreu de tétano. Brizola enlouqueceu de vez. Tudo aquilo acabou
e passou e se foi.
Candelária. Símbolo agora de um massacre de meninos de rua e não do povo bradando por eleições. Tudo fraccionou. Nunca mais se conseguirá juntar tanta gente em torno de uma idéia só. Ninguem faz idéia mais. Do que foi. Do que poderia ter sido.
Todas aquelas pessoas - diziam ser um milhão - pra onde elas foram?