Grande pioneiro do rock nacional, Erasmo Carlos traduziu a alma do Brasil
Os três primeiros acordes foram ensinados por Tim Maia: ré, lá e mi. Foi o suficiente para o adolescente Erasmo Esteves tocar mais de 30 rocks no violão. Depois, Roberto Carlos se juntou. Os três jovens se reuniam para trocar influências, ideias e referências.
Erasmo, morto aos 81 anos nesta terça-feira (22), passou a ensinar a batida do rock para os músicos brasileiros. Muitos guitarristas, baixistas e bateristas vinham de uma influência jazzística e tinham preconceito contra o rock. Foi ele quem ensinou a batida do rock e trouxe o gênero para o Brasil. No seu primeiro disco, batalhou para incluir o baixo elétrico.
Mas não foi apenas a roupagem musical. Erasmo tinha a atitude do rock and roll. Alto, imponente, com cara de mau, andava de moto, usava cordões e casacos. Construiu, com doce ingenuidade, o que batizou de "Minha Fama de Mau". Era uma maldade de fachada. Erasmo era uma das figuras mais gentis da música brasileira.
Pioneiro na instrumentação e na atitude, Erasmo também abriu caminhos para cantar o rock em português. "A primeira versão que estourou minha foi ‘Splish Splash’. Porque comecei fazendo versões. Eu não tinha vitrola em casa e já era louco por música. Ia para uma editoria e ficava a tarde inteira ouvindo músicas importadas que mandavam. Ficava ouvindo, ouvindo, ouvindo, até que um dia um cara falou: ‘Tenta fazer umas letras aí!’. Fui tentando fazer, e gostei", me contou Erasmo na entrevista que originou o especial "Erasmo 80", produzido pelo Conversa.doc e disponível no catálogo do Globoplay.
Começou a fazer sucesso no Clube do Rock de Carlos Imperial no início dos anos 60. Por gratidão a Carlos Imperial e Roberto Carlos, pegou emprestado o nome "Carlos". Erasmo Esteves passou a se chamar Erasmo Carlos.
Pioneiro na instrumentação, na atitude e nas letras em português, ele também foi quem abriu o caminho para a Jovem Guarda. Encantado pelo sucesso de "Festa de Arromba", Paulinho Machado de Carvalho, diretor da TV Record, convidou o cantor para apresentar o programa. Sempre generoso e amigo fiel, Erasmo recomendou o nome de Roberto. A música brasileira nunca mais foi a mesma.
Roberto e Erasmo consolidaram ali uma potência criativa que traduziu a alma do Brasil em canções. Numa entrevista para Nelson Motta na década de 1970, quando fazia um show explosivo com "A Bolha" no Rio de Janeiro, Erasmo definiu assim a parceria: "Eu acho que a gente se completa muito. Ele é um cara muito romântico. A escola dele é do samba canção. A minha escola é a do rock. Então põe ternura e romantismo na minha violência e eu ponho violência no romantismo dele."
O som de Erasmo seguiu evoluindo e abrindo caminhos e anunciando novas atitudes. Com o disco "Erasmo Carlos e Os Tremendões", lançado em 1970, já não era mais o iê iê iê da Jovem Guarda. Deu um passo adiante e ficou mais complexo, original e diversificado. Inspirado em "(Sittin' On) the Dock of the Bay", de Otis Redding, fez "Sentado à beira de um caminho" com Roberto Carlos. Também é desse disco o clássico "Coqueiro Verde" e a gravação de "Saudosismo", de Caetano Veloso. Tudo isso abriu caminho para o disco "Carlos, Erasmo", de 1971, hoje cultuado como marco de maturidade de Erasmo.
Ao longo das décadas, Erasmo foi um farol que guiou as novas gerações de roqueiros. A geração de 1980 o tem como referência. Bandas como Skank e Jota Quest, artistas como Marisa Monte, que vieram nos anos 90, continuaram tributando o Tremendão, fazendo parcerias e gravando as suas músicas.
Permaneceu brilhante e atuante até o fim. Ganhou o Grammy Latino em 2014, um Grammy especialíssimo pelo conjunto da obra em 2018 e, em 2022, poucos dias antes de morrer, outro Grammy com "O Futuro pertence à… Jovem Guarda."
O futuro lhe pertence, Erasmo, pioneiro criador
do rock brasileiro. Você deixa uma obra viva e atemporal que traz uma
profunda mensagem de amor, entendimento e paz. Sentimentos que estão
imunes à passagem do tempo são maiores que esse limite tão injusto que é
a morte.
FOLHA