Verissimo no reino de Cântaro
Antonio Prata
Não posso pensar na palavra 'lascívia' sem pensar numa mulher (...) magra e comprida. Lascívia, imperatriz de Cântaro, filha de Pundonor. Imagino-a atraindo todos os jovens do reino para a cama real, decapitando os incapazes pelo fracasso e os capazes pela ousadia.
Um dia chega a Cântaro um jovem trovador, Lipídio de Albornoz. Ele cruza a Ponte de Safena e entra na cidade montado em seu cavalo Escarcéu. Avista uma mulher vestindo uma bandalheira preta que lhe lança um olhar cheio de betume e cabriolé.
Segue-a através dos becos de Cântaro até um Sumário –uma espécie de jardim enclausurado– onde ela deixa cair a bandalheira. É Lascívia. Ela sobe por um escrutínio, pequena escada estreita, e desaparece por uma porciúncula. Lipídio a segue. Vê-se num longo conluio que leva a uma prótese entreaberta. Ele entra. Lascívia está sentada num trunfo em frente ao seu pinochet, penteando-se". Eis o começo de "Palavreado", do Luis Fernando Verissimo.
Que falta nos fará o escritor genial que por décadas soube, como nenhum outro, nos fazer rir desta realidade oriunda, deste mundo albatroz. Fosse espinafrando nossos políticos, aos quais faltam prepúcios e sobram endívias, fosse esculpindo, com sua afiada escuna, caricaturas hilárias do nosso patápio cotidiano.
Imagino Verissimo despertando no reino de Cântaro ao som de um bedel (espécie arcaica de viola com duas cordas). Está faminto e portanto é uma alegria descobrir, caídas ao seu redor, suculentas necas de pitibiriba. Ele come todas, sem deixar sobrar nem uma cutícula. Não é tão bom quanto o pudim de laranja da Lúcia, nem como as carnes da churrascaria Portoalegrense, mas pelo menos tira de sua boca o gosto álacre de cardume, com o qual acordou depois da longa viagem.
Verissimo caminha por cerca de dois demétrios em direção à bela melodia do bedel. Ao aproximar-se, distingue também as batidas de um rufião, marcando o ritmo, e, contrastando com as notas agudas dos raviolis, o sopro grave do que julga ser um muxoxo de pistão. (A música tocada para sua recepção é o estilo predileto do povo de Cântaro, o Macete –embora os mais jovens prefiram dançar o frenético loft ou relaxar ao som do borzeguim).
Depois de atravessar um campo de tunísias em flor, Luis Fernando adentra o palácio real. Dois guardas se ajoelham, baixando a espada e o pontiagudo alcaçuz, cheios de mesuras e prosopopeias.
Passando o ilíaco, túnel curto, de teto arqueado, dá num arezzo, o pátio interno, onde toca a orquestra. Maravilhado, descobre que naquele reino há apenas mulheres: metade são Lúcias, a outra metade, Patrícias Pilares.
De um lado da praça, sobre uma mesa maciça de maracangalha, um bufê da Portoalegrense. Do outro, sobre um ventríloquo de prata e cristal, centenas de pudins de laranja. No centro, num telão de 80 metros quadrados, um Grenal infinito, cujo apito inicial se deu no Big Bang e o final soará apenas depois da última chuva de enxofre do apocalipse —em caso de empate, haverá mais dois tempos de 15 minutos e, seguindo a paridade, pênaltis.
Só então Verissimo, cujos olhos não estão menos úmidos do que as pa pilas gustativas, reconhece a melodia do bedel, música que já cantara tantas vezes, embora jamais em ritmo de macete: "Correm os anos, surge o amanhã/ Radioso de luz, varonil/ Segue a tua senda de vitórias/ Colorado das glórias/ Orgulho do Brasil".
Recostando-se num rendez-vous aveludado o escritor se dirige, tímido, às milhares de Lúcias e Patrícias, "pode parecer um pedido estranho, mas dá pra botar só um pouquinho na TV Justiça?" —e ataca seu quinto pudim de laranja.
FOLHA
ilustração ADAMS CARVALHO


