Sociedade Atrofiada
Rudá Ricci
Chico de Oliveira, num texto intitulado “O Avesso do Avesso” afirmou que se FHC retirou a musculatura do Estado brasileiro, Lula atrofiou a musculatura da sociedade civil.
Para não escandalizar, penso em refletir sobre esta provocação retirando os personagens da frase. Neste caso, a questão se tornaria mais ampla: o final do século 20 teria debelado a potência e confiança social no Estado brasileiro e o atual século teria desmontado a energia moral que se acreditou que se firmava no Brasil desde os anos 1980. Não é pouco.
O Estado foi criado como garantidor da estabilidade social cujo objetivo era sustentar que as expectativas individuais (e coletivas) fossem passíveis de serem realizadas. Se no século 19 surgiu a ideia de proteção social via intervenção estatal – vindo do improvável projeto de Bismark -, no século 20 se projetou, via socialdemocracia, a lógica da promoção social via amplas políticas de Estado. De proteção à promoção social, ficava a noção que não basta os cidadãos sobreviverem, mas teriam direito a uma vida melhor, a se superarem.
Uma ideia que se aproximava do que Lev Vygotsky sugeria sobre a inteligência humana: não teria limites, dependendo dos estímulos corretos que o indivíduo recebesse.
Neste sentido, a política fiscal teria necessariamente que ser mais afrouxada e a inflação seria um fenômeno razoável a ser controlado com parcimônia. Nada da histeria atual que parece mais preocupada com ganhos financeiros que efetivamente evitar a penalização dos mais pobres. Mesmo porque, os mais pobres continuam vivendo aos trancos e barrancos com austeridade fiscal ou não.
A década de 1990 foi implacável com o conceito de promoção social. Do ataque ao mundo soviético, os ultraliberais, reunidos em castelos europeus desde 1944, passaram a mirar seus mísseis contra a socialdemocracia.
E obtiveram sucesso. Lembro que na última década do século 20 se firmou no Brasil a ideia de que o desemprego era culpa do desempregado. A ele caberia estudar e se qualificar para garantir sua empregabilidade.
As empresas nunca errariam, segundo esta cantilena, ao contrário da sociedade brasileira, deformada, indolente, errada desde o berço.
Algumas teses defendidas neste período chegaram às raias do delírio, como o modelo de “empresas espaguetes” vociferado por Tom Peters em seu ambicioso livro “Tempos Loucos exigem Organizações Malucas”. Em síntese, as novas tecnologias aumentavam o ritmo da inovação e criação de novos produtos, acelerando o ciclo de cada mercadoria e transformando a fábrica num espaço de chapeleiros malucos. Em tal velocidade (um produto novo, por segmento produtivo, a cada três meses), as burocracias estatais fatalmente fracassariam, deixadas no fim da fila da corrida desembestada em curso.
Logo vieram sugestões de adaptação do Estado que mais tarde se revelaram um retumbante erro, caso do modelito neoliberal do Consenso de Washington. Do Reino Unido veio a Nova Gestão Pública que aqui na terra de Chalaça ganhou o pomposo nome de “Estado Gerencial”. Um Estado facilitador para o fluxo de capitais globalizados, sem cercas ou normatizações. O “mercado” ganhou estatuto de ator político e demiurgo do futuro do país. Não deu certo, mas a crença ganhou corações e algumas mentes.
Debelada a musculatura do Estado brasileiro – e instalado o ódio gerencial ao modelo varguista -, as duas primeiras décadas do século 21 presenciaram a quebra da força política da sociedade civil. Como tudo no Brasil é precoce – afinal, trata-se do país do futuro -, a sociedade civil que emergiu no processo de redemocratização teve fôlego para chegar à virada do século, claudicando a cada década seguinte.
Da afirmação da sociedade civil como elemento central da gestão estatal – via orçamento participativo e conselhos de gestão pública -, vimos sua fragmentação em iniciativas pessoais empreendedoras até chegar nas orações em público pedindo a descida do Espírito Santo para colocar um carro ou uma casa nas suas vidas. De alguma maneira, o pobre empreendedor percebia que sem ajuda divina, seu esforço pessoal não chegaria muito longe. Daí que o binômio esforço pessoal/ajuda divina ganhou ares de discurso de campanha eleitoral. Nada de Estado.
Esgarçada e cercada por todos os lados por aplicativos, promessas de prosperidade, dízimos e ataque a tudo o que é coletivo e que não grita pelo Espírito Santo, a sociedade brasileira perdeu musculatura e até mesmo sua feição. Sem isso, até as expressões culturais se transformaram em entretenimento efêmero.
A fragmentação e o misticismo cobram consequências importantes à nação. Uma delas é a “carnavalização da política”: como no carnaval, todos sugerem a transgressão, mas nunca rompendo com a ordem já estabelecida. Uma mesmice que atinge todas agremiações e ideologias políticas. Outra consequência é a fragilidade da sociedade civil nacional, agora postada como uma presa fácil a ser capturada pelos “tigrinhos”, “influencers” e discursos de revolta alheia.
Com Estado sem legitimidade e sociedade atrofiada, o que nos restaria? O discurso diário repisado pela Globonews que o mercado sempre está correto, mas as demandas populares continuam atrapalhando sua genialidade, assim como um Estado predador, desqualificado e insustentável. Porque o discurso ultraliberal não se contenta em errar e desgraçar a vida de todos: é ganancioso a ponto de não se realizar com a caixa de Château Pétrus acompanhado por bacias de caviar Almas. É preciso sempre mais, como se o tal “mercado” tivesse baixa autoestima.
É provável que este ciclo de atrofiamento se extingue em algum momento, dado que o sofrimento e as tentativas fracassadas de sucesso individual imediato levam ao esgotamento.
Porém, até lá, a musculatura atrofiada emitirá espasmos, mas terá pouca energia para enfrentar a gritaria gananciosa que espalha uma energia avassaladora pelas 268 milhões de linhas de telefonia móvel registradas na Anatel.
Chico de Oliveira anteviu o buraco sem fundo em que nos metíamos. Mas, por algum motivo, não quisemos ouvi-lo.



