Que País queremos ser?
CRISTINA SERRA
mocratização está cevando
uma “boiada” capaz de nos fa
zer regredir 40 anos em matéria de pro
teção ambiental. No que tange à boia
da, por assim dizer, vemos uma alian-
ça que reúne, do mesmo lado do balcão,
as forças da direita, da extrema-direita
e do fisiologismo mais sórdido em tor
no de um interesse comum: manter o
País com os pés fincados no atraso ci
vilizatório. Refiro-me ao Projeto de Lei
2.159/2021, que tramita, de forma subi
tamente apressada, no Senado. Se apro
vado, ele jogará no lixo as regras do li
cenciamento ambiental no Brasil.
O licenciamento ambiental – proces
so administrativo obrigatório para ativi
dades econômicas com potencial polui
dor – foi uma conquista da democracia, e
não podemos perdê-la. O marco primor
dial dessa construção foi uma resolução
do Conselho Nacional do Meio Ambiente
(Conama), de janeiro de 1986, que estabe
leceu as regras gerais para o licenciamen
to. Essa resolução determina a obrigato
riedade da realização de estudos de im
pacto ambiental, que devem subsidiar os
técnicos e autoridades responsáveis pelas
licenças e orientar a adoção de medidas
mitigadoras, as chamadas condicionan
tes. O estudo de impacto é tão relevante
que consta dotexto da Constituição de 1988.
O que está em jogo neste momento é a
destruição do licenciamento, na base do
rolo compressor e do correntão do lobby
ruralista e empresarial. Duas comissões
do Senado, a de Agricultura e a de Meio
Ambiente, formularam um texto comum
que tem votação prevista para 21 de maio.
Se aprovado, o texto segue para o plená-
rio. O argumento dos que defendem ras
gar as regras em vigor é o de sempre:
desburocratizar o processo e destravar o
crescimento do País. Como se o “culpado”
pelo atraso fosse o meio ambiente.
A linguagem ambígua e enganosa ten
ta camuflar o “liberou geral” para as em
presas, que leva as digitais dos relatores
nas duas comissões, ninguém menos que
a ex-ministra da Agricultura de Bolsona
ro, senadora Tereza Cristina (PP–MS), e
o senador Confúcio Moura (MDB–RO). O
PL 2.159/2021 inventa modalidades de li
cenciamento, todas muito mais rápidas
e desreguladas do que as existentes hoje.
Permite também renovações automáticas
de autorização por meio do simples preen
chimento de um formulário na internet.
Outra facilidade para as empresas seria
a reutilização de estudos ambientais an
teriores, mesmo no caso de expansão dos
empreendimentos. Toda a lógica do tex
to é a de reduzir o papel do Estado, o con
trole social e a participação popular na
avaliação dos projetos. Não se trata de
simplificação, mas de desregulação.
A história recente nos mostra que o
problema dos empreendimentos não é o
licenciamento tal como existe hoje. Isso
é evidente nos três maiores desastres da
mineração no Brasil. Em 2015, o colapso
da barragem de rejeitos das mineradoras
Samarco, Vale e BHP, em Mariana, matou
19 pessoas e contaminou o Rio Doce. Em
2019, o rompimento da barragem da Vale,
em Brumadinho, matou outras 272 pes
soas e poluiu o Rio Paraopeba.
O terceiro desastre é o do afundamen
to do solo, em Maceió, causado pela extra-
ção subterrânea de sal-gema pela petro
química Braskem. Um tremor de terra,
em 2018, revelou a exploração predatória
que obrigou à remoção forçada de 60 mil
moradores de cinco bairros. Analisei os
processos de licenciamento dos três em
preendimentos. Em todos há indícios de
conduta ilegal, das empresas e dos agen
tes públicos que atuaram nos processos,
como apresentação de laudo falso, pre
varicação, improbidade administrativa.
Não é que a lei seja ruim. O problema está
nas pessoas que não a cumprem.
Suas excelências, os senhores sena
dores, deveriam estar mais preocupa
dos com a impunidade nesses três ca
sos. Até hoje, ninguém foi condenado pe
los crimes ambientais praticados e pela
morte de quase 300 brasileiros. Os pro
cessos de Mariana e Brumadinho se ar
rastam no Judiciário. No caso Braskem,
nem sequer há processo de responsabi
lização criminal. E as vítimas ainda bus
cam as reparações devidas na Justiça.
É legítimo e importante atualizar leis
de caráter geral, inclusive para orientar
legislações estaduais e municipais. Mas
as mudanças não podem ter como norte
facilitar negócios que trituram vidas e so
nhos. Infelizmente, no ano em que o mun
do inteiro virá ao Brasil para discutir o fu
turo do planeta, na COP30, em Belém, os
parlamentares se mostram capturados
pelos interesses das grandes corporações
e de costas para os cidadãos. Precisamos
nos apropriar do debate sobre o nosso fu
turo e sobre o país que queremos ser. •
CARTA CAPITAL
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