DE COMO MAT3I MEU NARRADOR
Marcílio Godoi >>
Nos muitos anos em que passei escrevendo, meus narradores sempre se comportaram como pessoas de bom trato. Às vezes mais rústicas, noutras mais empoladas ou mesmo flagrantemente infantis ou saudosistas. Com estes narradores desenhados por mim pude erguer narrativas com conflitos mais ou menos controlados por mim. E os raros entraves que eventualmente surgiam, nas indisposições da trama, serviam até para emprestar uma dinâmica própria à voz do texto.
Sempre ouvi de escritores que admiro o mantra de que, na escrita, a certa altura, os personagens começam a ganhar vida própria e subvertem aquilo que projetamos como o seu destino na trama. Essa experiência sói ocorrer mesmo em contos e até em poemas, com o eu lírico ganhando surpreendente autonomia, mas é muito mais comum nos romances, quando principalmente os protagonistas nos conduzem para muito além das nossas próprias anotações iniciais de roteiro.
Mas a história que vou contar aqui ultrapassou qualquer limite do razoável. Espero que você, leitor, acredite que quem a está contando a você seja mesmo eu, e não o fantasma de um narrador de quem infelizmente, tive que tirar a vida, num lamentável episódio. Tento fazer deste relato o mais confiável possível, acredite.
O caso se passou durante uma das muitas tentativas em que eu ensaiava retomar a escrita de um romance já dado como perdido, pois que estava engavetado há mais de vinte anos. Nas oportunidades anteriores, invariavelmente eu o abandonava exatamente por não encontrar a voz de um narrador que o conduzisse a narrativa de forma convincente.
Eis que, numa tarde chuvosa dessas, meu time havia perdido, nem sei se foi exatamente por isso, mas eu me encontrava mesmo disposto a sumir do mundo. Então, distraído e insone puxei pela aba, como quem não quer nada, o meio de um segundo capítulo que estava travado e, em uma manobra bastante comum, trouxe o narrador para a primeira pessoa.
Na operação, pude perceber, de ouvido, não sem uma surpreendente satisfação, que o danado havia encontrado, digamos, o tom da sua fala, o ritmo das palavras, naquilo que chamamos intimamente de música do narrador, coisa que comporta, digamos, a sua ética propriamente dita.
Na desenvoltura que ele foi ganhando, percebi que os muito impasses que o texto carregava haviam sido soterrados e as soluções do enredo se apresentavam agora fluidas, íntimas, repleta dos trejeitos dele, é verdade, mas com inegável personalidade, o que deu toques de originalidade ao texto final.
Mais adiante, sem que eu pudesse sequer me contrapor ao seu discurso fácil, vi que ele se encaminhava com as próprias pernas, se apresentando inclusive como um novo protagonista, afirmando a sua versão de tudo o que ocorrera até ali na história. Como um Frankenstein, o meu narrador tinha virado uma nova criatura, um novo autor, para muito além de meu controle. Sem que eu me desse conta, passaram-se quase dez horas.
Era incrível como ele amarrava a linha do tempo e as entradas e saídas das outras personagens. E conduzia as vozes, ora solene, ora vulgar, como aedos, rapsodos e menestréis, maestros do teatro antigo. De narrador observador, lentamente foi se transformando em narrador onisciente, tomando conta de tudo e eu, tentando dar um freio naquela história toda, já com fome, ufa, parei a escrita e resolvi passear o cachorro, comer um sanduíche na calçada.
No caminho, agora é preciso que vocês me creiam, mesmo que eu já não estivesse mais escrevendo, o sujeito ainda se metia na minha vida real, inoportuno, como se tentando me convencer que a vida que deixamos lá no papel fosse mais importante. Como pode isso, eu me perguntava, essa voz agora me embalando, me acossando as ideias, me embrulhando o estômago e o pensamento aqui, totalmente fora do texto/contexto?
Enredado pela companhia infernal do narrador que eu mesmo criara, respirava virando o segundo chope, tentando manter a calma para não deixar que aquela criatura me enlouquecesse o pensamento. Suspeitava de que cada passo ou gesto meu, que cada palavra minha era determinada agora por aquele timbre sabe-tudo que, vindo de minhas entranhas, me capturava a consciência. Parodiando Maiakovski, em mim a narrativa ficou louca, eu era todo narrador!
Por sorte, pude perceber que havia ainda algumas partes de meu raciocínio que não atendiam exata e completamente aos seus comandos de narrador onipresente, onisciente, onipotente. Por algumas frinchas deixadas por ele, por essas pequenas brechas ou rachaduras da sua presença de inventor de mundos, consegui arquitetar uma reação, que dependia, claro, de voltar ao livro em que ele havia surgido. Eu ainda não sabia como, mas, de algum modo, eu deveria interditá-lo de continuar a (me) escrever.
Em pensamento, eu evitava usar a palavra morte, pois nesse ato falho a minha ação se auto revelaria. Mas inquietava-me um impasse: deveria eu realmente eliminar aquele que, em linhas gerais, prometia ser pra mim um ganha-pão? Como dispensar uma mente tão sagaz, aquele raciocínio poderoso que de mim se apossara?
Mas o inferno de ser conduzido pelo pensamento de uma outra pessoa já estava me fazendo dois: o esquizofrênico e o louco. Sinceramente, eu não sabia mais dizer quem era um, quem era outro. Hoje, depois do ocorrido, no entanto, quando já estou liberto dele, posso lhes garantir, eu fiz o que tinha de ser feito. Não havia outra saída, eu tinha que literal e literariamente matá-lo.
Já no computador, estava fazendo-me de distraído, quando, em uma manobra, modestamente falando, muito eficaz, abri um outro capítulo com um pequeno e insólito novo narrador. Era uma faca, isso mesmo, uma faca. Era ela quem narrava agora e, de modo nada inofensivo, descreveu os lancinantes golpes com que ela atingiu o narrador até ali. Em mínimos detalhes eu assisti a violência do embate e a forma com que o corpo dilacerado foi encontrado para a total surpresa das outras personagens.
Antes que ela, a faca, tomasse conta de toda a narrativa, precavido, voltei a controlar o texto com pulso firme. Com minha velha e pausada voz em terceira pessoa mesmo, com o habitual autor implícito com que costumo conduzir meus escritos pude, como um observador frio, controlar a situação. Deu certo. O livro chegou a termo com alguma decência. E o editor coçou o queixo na leitura, mas aceitou bem o resultado.
Hoje tomei o livro impresso depois de alguns anos e o reli. À medida que lia dava-me por vencido: aquela história até que parava de pé. Mas a melhor parte da obra, indiscutivelmente, foi minha incontrolável criatura quem escreveu.
(Foto: Daido Moriyama)