A nossa metade não humana
JOSÉ EDUARDO AGUALUSA
Cerca de metade das células do nosso corpo não são humanas. Pertencem a bactérias, fungos, vírus e outros seres invisíveis aos nossos olhos — o microbioma.
Desconfio que a melhor parte de alguns humanos é a sua metade não humana. Outros talvez não sejam bons (ou felizes) porque têm um mau microbioma. O microbioma influencia o nosso comportamento através do eixo intestino-cérebro. Certas bactérias intestinais produzem dopamina, serotonina e outras substâncias que ajudam a regular o humor e a ansiedade. Um microbioma desequilibrado pode provocar situações de ansiedade e depressão. No limite, até doenças neurodegenerativas.
A cada avanço do conhecimento, a arrogância humana recua — ou deveria recuar. Não somos o centro do Universo. Somos parte dele. Não estamos apartados da natureza. Somos a natureza. Não somos uma forma de vida superior. Somos a conjunção harmoniosa de inumeráveis formas de vida.
Os avanços da ciência parecem confirmar o que muitas filosofias antigas já sugeriam. Por exemplo, que a ideia do eu é falsa, uma teimosa ilusão — algo defendido desde há longos séculos pelo budismo.
O animismo — essa cosmogonia ou visão do mundo, desenvolvida por povos indígenas em diferentes regiões do planeta, da África às Américas, passando pela Austrália — também defende a ideia de que o ser humano é um organismo coletivo, uma comunidade, uma constelação de vidas. Mais uma vez se comprova a extraordinária atualidade de muitas culturas consideradas arcaicas, que, durante séculos, a “modernidade ocidental” desprezou e humilhou.
Se alguns dos nossos estados emocionais, e até eventuais decisões, resultam da atividade de vírus e bactérias, organizados em vastas e complexas redes, então somos menos seres individuais e muito mais um produto do diálogo e da interação. O que nos define não é tanto uma identidade única, uma alma singular, mas sim a relação dinâmica entre múltiplas forças biológicas, sociais e ambientais. Admitindo que a nossa identidade pode ser moldada por uma infinidade de minúsculas criaturas, isso significa que é fluida — ou seja, estamos, a cada instante, nos tornando outros.
Não sou hoje quem fui ontem, nem serei amanhã quem sou agora, porque o meu microbioma mudou, o meu corpo mudou, as minhas conexões e experiências mudaram. Além disso, a minha capacidade para apreender a realidade também vai mudando.
Esta ideia parece-me mais libertadora do que assustadora. Em vez de nos agarrarmos a uma identidade fixa, imutável, seríamos mais felizes se fôssemos capazes de aceitar que a mudança é parte essencial do que significa ser humano — ser vivo. Assim como o microbioma, a identidade é um equilíbrio dinâmico, um jogo festivo entre diferentes formas de experimentar a vida. A identidade faz-se caminhando. Somos seres em mutação.
Fernando Pessoa ficaria feliz com esta conclusão. “Sou mais variado que uma multidão de acaso”, escreveu o poeta: “Sou mais diverso que o universo espontâneo,/ Todas as épocas me pertencem um momento,/ Todas as almas um momento tiveram seu lugar em mim.”
GLOBO