Os deportados de Trump
Não há lugares pequenos. O que há é lugares que não conhecemos bem. Dentro dos mundos minúsculos prosperam mundos enormes
José Eduardo Agualusa
Os deportados de Donald Trump, confusos e acorrentados, permanecerão como a imagem de um tempo vergonhoso, em que assistimos ao regresso da crueldade enquanto política de Estado num grande país democrático;
O pior é que o espetáculo ainda mal começou. Na passada quarta-feira, o
presidente americano afirmou que enviará 30 mil imigrantes em situação
irregular para a Base de Guantánamo, em Cuba. Nas próximas semanas
testemunharemos episódios cada vez mais extremos e degradantes.
Acordo todos os dias com uma dor em algum lado da alma, e nem sei se estou sofrendo de velhice ou de lucidez. O pior que pode acontecer — e está acontecendo — é a normalização do inaceitável. Quando deixarmos de nos horrorizar com as persistentes agressões de Trump e dos seus rapazes aos direitos humanos, à ética, à moral, à gramática e ao simples bom senso, então, sim, eles terão vencido.
Ninguém imigra para experimentar os encantos do desenraizamento. Algumas pessoas procuram uma vida melhor. Outras, apenas vida. Há quem fuja da pobreza, da falta de perspectivas, e quem tente escapar à brutalidade de ditaduras, de guerras, ou das calamidades naturais (e das outras, não tão naturais, que são consequência direta da irresponsabilidade humana).
Simpatizo com imigrantes e exilados. Sou um deles. Sei quanto custa viver longe do país em que nascemos e crescemos. Pátria é o lugar onde não temos de explicar quem somos; é o lugar onde rimos de piadas que mais ninguém compreende; é onde estão aqueles odores que nos levam de volta à infância; é — como me disse, na sua cidade natal, a Cidade do Cabo, o escritor J. M. Coetzee, hoje radicado na Austrália — conhecer a linguagem das ruas. O exílio é ser privado de tudo isso. Imigrantes, legais ou ilegais, não deveriam ser tratados como assassinos. Para Trump, contudo, todas essas pessoas são “terríveis criminosos”, e alguns “tão ruins que nem confiamos nos seus países para os manterem, então vamos mandá-los para Guantánamo”.
Se eu fosse americano estaria agora procurando um país onde me exilar. Seria um refugiado da vergonha. Não iria para uma grande metrópole. Procuraria uma ilha distante, absorta, encharcada de luz, onde ninguém me perguntasse ao saber a minha origem:
— E o Trump?! — com um grão de troça (ou de pena) na voz.
Por exemplo, o lugar que eu mesmo escolhi para viver — a Ilha de Moçambique, cidade histórica, uma das mais antigas da África Austral. Não por ser um lugar pequeno. Não há lugares pequenos. O que há é lugares que não conhecemos bem. Dentro dos mundos minúsculos prosperam mundos enormes. Pouco a pouco, enquanto nos aprofundamos neles, vamos compreendendo que são infinitos. As grandes cidades não são mais vastas — apenas mais fragmentadas.
Assim, viver na Ilha de Moçambique não é muito diferente de viver em qualquer outro lugar. A dimensão de um espaço não se mede pelo número de seus habitantes, mas pela profundidade das vidas que nele se desenvolvem.
A Ilha de Moçambique é tão grande que nem sequer presta atenção a Donald Trump.
GLOBO