Fragmentos de textos e imagens catadas nesta tela, capturadas desta web, varridas de jornais, revistas, livros, sons, filtradas pelos olhos e ouvidos e escorrendo pelos dedos para serem derramadas sobre as teclas... e viverem eterna e instanta neamente num logradouro digital.
Desagua douro de pensa mentos.
quinta-feira, janeiro 02, 2025
A inundação dos tempos
Ouço algumas canções consideradas das melhores de 2024 e lá está ele, o ontem, gritando ‘presente’
Chegamos ao segundo dia do ano e eu sigo um pouco sem jeito para
desejar um feliz 2025. Não porque eu não queira que ele seja feliz,
tenho certeza de que será, mas porque não acredito que estejamos todos
sob o mesmo teto de 2025. Há um tempo em que não vivemos o mesmo tempo. A
mim, por exemplo, não se acanhem em desejar, pelos meus cálculos, um
feliz 1973. O carro que tenho é uma Variant 1971; o prédio em que vivo, o
Copan, assim como todos os meus vizinhos, parecem estar em 1966; um sol
ilumina meu coração quando cruzo o Viaduto do Chá, de 1862, ou ando de
bicicleta pelo Minhocão, de 1971; e, enquanto escrevo esse texto, o
álbum “Night Train”, do pianista Oscar Peterson, lançado em 1963, gira
em minha vitrola Thorenz, de 1972, com uma novidade atrás da outra. Não
tenho, até aqui, nenhum indício de que estej mesmo em 2025.
O passado não é o refúgio dos desorientados nem a negação do presente,
mas se tornou o próprio aqui e agora até mesmo de quem jura estar
pisando lá na frente. Quando ouço algumas canções consideradas das
melhores do ano de 2024, lá está ele, o ontem, novinho em folha,
gritando “presente”. A música “Caju”, de Liniker, é o puro suco do
R&B dos anos 1990; “Garota”, do grupo Os Garotin, é disco funk dos
anos 1970 até a medula; “Só Fé”, de Grelo, com mais de 105 milhões de
ouvintes no Spotify, usa a mesma base eletrônica das músicas tocadas nos
bregas dos anos 1970 e 1980; e Amaro Freitas, grande pianista de jazz
brasileiro, lançou o disco “Y’Y” provando a força daquilo que, em 2024,
se tornou um outro jeito de nos referirmos ao tempo pretérito com algo
mais do que saudade: ancestralidade.
A explosão das fronteiras que dividiam eras temporais até os anos 2000
pode ter se dado quando sentimos que não havia mais para onde ir. Não
por falta de talento, mas de caminhos. Abrimos as barragens para que o
passado inundasse as terras do presente de uma forma que tudo começasse
de novo. Os modernistas haviam conseguido fazer isso uma vez falando em
antropofagia, em 1922, e os tropicalistas, imitando os modernistas, uma
segunda, em 1968. Desta vez, comemos não só o que vem de fora, como
propôs Oswald de Andrade, como também tudo o que vem de trás do fundo do
barro do chão, como disse Gil. E a música não é o único campo de
transbordamento temporal. O longa brasileiro mais aclamado dos últimos
anos, “Ainda estou aqui”, estava nas salas de cinema como um “filme de
época” no instante em que seu enredo, do sumiço de um engenheiro
desaparecido pelo sistema de assassinatos instalado pela ditadura nos
anos 1960, voltava a ser presente com a descoberta de uma sangrenta
trama golpista no Brasil. Antes, seria outro documento histórico de um
período trevoso. Com a transposição temporal, encheu-se de urgência e de
hojismo.
O fato é que passado virou coisa de velho, no pior sentido do termo.
Mas há nisso um convite estimulante para 2025: assim como a hibridação
das sexualidades (uma pena as racialidades terem de tomar o rumo
contrário), não dividir mais o tempo em eras, destruindo sua linha
histórica, parece ser o melhor caminho para enxergarmos o que é esse
tempo. Meu filho, 23 anos, vai a raves que tocam fullon, uma divisão
mais acelerada e psicodélica do trance, dos anos 1990. Ao mesmo tempo,
acaba de descobrir o álbum de Miles Davis, “Kind of blue”, lançado em
1959. Para ele, o trance é antigo e Miles Davis, que produz um som onde
ser humano algum parece ter chegado, o novo. Ele diz que quer começar a
fazer suas próprias faixas e pensa em usar a voz de uma mulher que ouviu
dia desses cantando uma música que o emocionou no Spotify. A mulher é
Clare Torry e a música é “The great gig in the sky”, que o Pink Floyd
lançou no disco “The dark side of the Moon”, de 1973. Feliz velho novo
ano!