Cem Anos de Solidão', a série, é um alento para quem temia adaptação do livro
LUCIANA COELHO
Assíduo nas listas de melhores romances do século 20 e de preferências pessoais de leitores diversos, "Cem Anos de Solidão" é tanto a epítome de um gênero (o realismo mágico) quanto de parte expressiva de um continente (a América Latina); um livro que, com estimados 50 milhões de cópias vendidas, emana nostalgia e doçura na memória dos que o leram, muitos dos quais o fizeram bem jovens.
Não é de se estranhar, portanto, que sua estreia nesta semana na forma de série, na Netflix, tenha sido tão ansiada quanto temida. Trata-se de ambição tremenda adaptar para as telas esta obra-prima do colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014), algo que ele mesmo receava permitir e que sempre criou sentimentos dúbios em seus milhões de leitores.
Há razões objetivas e também indizíveis para isso. O romance, afinal, se desdobra em forma de saga pelas muitas gerações da desgraçada família Buendía, e retratar seus infortúnios com fidelidade ao livro exigiria tempo, afinco e dinheiro diante de um resultado incerto.
A conjunção da atmosfera onírica relacionada à região e da aridez de sua realidade econômica e política também produz algo difícil de capturar, mais ainda após ter sido, por quase seis décadas, erigido na imaginação de tanta gente.
Finalmente, "Cem Anos de Solidão" costura temas universais em seu enredo que tão bem se apropria de elementos bíblicos e gregos, mas é improvável que um gringo entenda suas nuances da mesma forma que um latino-americano.
É um alívio —e uma feliz surpresa— ver tudo isso transplantado para as telas de forma tão convincente e pulsante. Não que a minissérie se coloque no mesmo patamar que o livro, como bem escreveu a colega Sylvia Colombo. Mas a saga do coronel Aureliano Buendía, dos Buendía que o precederam e dos que vieram depois dele está vivamente contada na produção escrita por Natalia Santa e José Rivera e dirigida por Alex García Lopez e Laura Mora Ortega.
A equipe, bem como o excelente elenco, é essencialmente latina não apenas porque os herdeiros de Gabo insistiram que ele preferiria assim, mas também por estratégia da Netflix, cujo catálogo de obras originais em línguas que não o inglês se expande como o de nenhuma outra plataforma a fim de ampliar sua base de assinaturas. E o caminho seguro é apostar em obras ou nomes consagrados.
Como o livro, "Cem Anos de Solidão", a série, exige certa atenção para acompanhar as sucessivas gerações da família que fundou Macondo, na qual a (má) sorte se repete e os mesmos nomes se alternam pela linhagem.
Nesta primeira leva de oito episódios (haverá mais oito, com data de estreia a ser anunciada), conhecemos o casal de primos Úrsula Iguarán (Susana Moráles) e José Arcádio Buendía (Marco González), que, na tentativa de escaparem de um destino maldito, fundam Macondo e toda uma genealogia de personagens trágicos, sobretudo o intuitivo Aureliano (Claudio Cataño), que se tornará coronel, rebelde e protagonista da história.
Se muitas produções hoje pecam pela falta de concisão, no caso desta série um dos méritos está em dar tempo para que os personagens se apresentem e cresçam, o que se mostra essencial para dar força à intrincada genealogia imaginada por García Márquez, suas repetições e seus constantes opostos entre carisma e força, razão e emoção, terra e céu que se alternam aos pares conforme crescem a família, Macondo e a Colômbia.
Traz certa alegria pensar que Gabo, vivo estivesse, poderia ter gostado do resultado.
Os oito episódios da primeira parte de 'Cem Anos de Solidão' estão disponíveis na Netflx
FOLHA