Planos de saúde alegam prejuízos para se livrar de idosos e crianças autistas
Bernardo Mello Franco
No mês passado, pais de crianças autistas começaram a receber um aviso inesperado. Por e-mail, a administradora Qualicorp informava que seus planos de saúde Amil seriam cancelados. A empresa alegou que os contratos estariam “gerando prejuízo” à operadora. Por isso, seriam encerrados unilateralmente, mesmo com as mensalidades em dia.
O drama das famílias atípicas chegou à imprensa. Em pouco tempo, soube-se que o problema era maior — e envolvia outras gigantes do setor. Idosos, portadores de doenças raras e pacientes com câncer também entraram na mira das rescisões em massa. Passaram a ser vistos como clientes indesejáveis, a serem varridos das carteiras de seguros.
Em anúncio publicado nos maiores jornais do país, a Amil disse agir “dentro da mais absoluta legalidade”. A operadora afirmou que “lamenta os transtornos causados” e descreveu o cancelamento como uma medida “difícil”. Se é difícil para ela, imagine para as famílias que ficaram desprotegidas no momento em que mais precisavam do plano.
Num mercado acostumado a fazer o que bem entende, a rescisão unilateral virou epidemia. As queixas à Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) subiram 99%. A Secretaria Nacional do Consumidor notificou os planos e definiu a situação como “inaceitável”. Na Câmara, arma-se uma CPI para investigar as empresas e a atuação da agência reguladora.
“A ANS é uma vergonha. Entre a operadora e o cliente, sempre escolhe o lado da operadora”, critica a médica e professora Ligia Bahia, da UFRJ. Ela define a rescisão como uma prática “perversa”. “O cliente interessa quando está saudável e deixa de interessar quando está doente”, resume.
Na quinta-feira, a Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) se defendeu nos jornais. Em carta aberta, afirmou que as operadoras “têm enfrentado um quadro desafiador, especialmente com a proliferação de fraudes”. O texto tem 200 palavras, mas evita os termos “rescisão” e “cancelamento”. “O que se deseja é a ampliação do acesso à saúde suplementar, com cada vez mais qualidade e segurança”, conclui. Faltou explicar como ampliar o acesso à saúde negando direitos aos segurados.
Fraudes são caso de polícia, e cabe aos planos denunciar quem age de má-fé. Ao citá-las de forma genérica, as empresas tentam desviar o foco e ofendem famílias que apenas lutam por atendimento. “Estão expulsando as crianças, e não as clínicas fraudadoras. Ou estão insinuando que os pais ganham com reembolsos fraudulentos?”, questiona Ligia Bahia.
“Se a família é obrigada a interromper as terapias, a criança corre o risco de regredir. Os relatos que estamos recebendo são de partir o coração”, desabafa a psicopedagoga Viviani Guimarães, do Movimento Orgulho Autista Brasil (Moab). Na quarta, a entidade obteve uma liminar que proibiu a Amil e a administradora Allcare de cancelar contratos de famílias atípicas no Distrito Federal. A Amil afirmou que “cumprirá integralmente” a decisão.
Na véspera, Viviane se chocou com o tom das empresas em audiência na Câmara. Representante da Qualicorp, o advogado Alessandro Acayaba de Toledo insistiu na tese das fraudes, levantou suspeita sobre a “proliferação de clínicas” e opinou que terapias intensivas “não parecem adequadas” para crianças autistas. O doutor definiu o trabalho da ANS como “fantástico”, “muito rico” e “valioso”. Sem corar, disse ter conversado com um diretor da agência reguladora antes da sessão.