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    quinta-feira, maio 09, 2024

    Onda de ódio provocada por charge acende sinal de alerta

     

     A charge de Jean Galvão publicada na Folha mostra uma família, pai, mãe, um menino e uma menina, sobre o telhado de uma casa ilhada pela enchente. A menina, olhando para a correnteza, sentada com os braços abraçando os joelhos, fala ao irmão: “Não chora, vai alagar ainda mais…”

     

    Sérgio Rodrigues

    Típica do ambiente maniqueísta, chapado, irrefletido e verbalmente violento das redes sociais, a onda de indignação e ódio provocada pela charge que Jean Galvão publicou na Folha no último domingo (5) tem ingredientes que a destacam da rotina e que deveriam acender um sinal de alerta.

    A charge em si –descontado tudo o que a expressão "em si" tem de incompatível com uma mensagem de massa, sempre sujeita a múltiplas leituras– não é das mais notáveis em engenho, mas a meu ver consegue traduzir em tom menor algo que tende ao indizível: o estupor provocado pelo gigantesco flagelo que se abateu sobre o Rio Grande do Sul.

    Refugiada da enchente no telhado de sua casa, cercada de água lamacenta por todos os lados, uma família composta de quatro pessoas contempla a desolação. À beira do desespero, pai e mãe estão mudos.

    O que podem dizer os adultos, responsáveis pela segurança da família, quando reduzidos de tal forma à impotência? Cabe à filha pequena, provavelmente a mais velha, amparar o irmãozinho com lógica pueril: "Não chora, vai alagar ainda mais".

    A poesia da cena –amarga– me parece residir no fato de que, para a inocência da menina, até o inevitável choro está interditado, uma vez que lágrimas poderiam agravar a inundação. Não há alívio à vista nem no mundo físico, nem no mundo emocional. A tristeza alagou tudo

    É possível, claro, achar que a charge de Galvão não é tão rica assim em significados. Entendo os amigos que a consideraram de mau gosto. No entanto, que tanta gente embarque na tese de que o artista zombou da desgraça alheia me parece um sinal claro de que estamos vivendo tempos perigosamente hostis à inteligência.

    Não se trata de uma burrice individual, particularizável, mas coletiva –o pior tipo, pois afeta até pessoas inegavelmente inteligentes. Afeta todo mundo, inclusive quem percebe o que está acontecendo, mas se vê impotente como a família no telhado. O problema é de linguagem.

    Como sociedade, estamos perdendo na vertigem cacofônica das redes a capacidade de lidar com sutilezas. Espera-se da arte que seja prescritiva e construtiva, que suas mensagens tenham a clareza de cartilhas e manifestos, unívocas e mobilizadoras.

    No Painel do Leitor de segunda (6), Galvão se desculpou: "Significa que falhei na comunicação do desenho". Mas como, sendo artista, não falhar? Tudo precisa ocupar um lugar político e social predeterminado, sob pena de vara e execração pública.

    Se é charge, só pode ser humor. Se é humor, só pode ser zombaria. Se alguém zomba de uma tragédia dessa magnitude, não presta como ser humano.

    Junte-se a tantas certezas o reservatório infinito de superioridade moral que costuma morar dentro dos guardiães da nova ordem e o resultado é um ambiente sufocante não só para a arte, mas para o pensamento.

    Falta falar da má-fé com que os espertalhões tiram proveito político desse estreitamento cognitivo. Acredito que muitos dos que puxaram coros de ódio contra o chargista soubessem muito bem que ele não estava fazendo pouco de uma dor desmedida. E daí?

    Seja para ganhar likes, seja para jogar pedra na imprensa ou ainda para desviar a atenção do público dos verdadeiros vilões do cataclismo gaúcho –os políticos negacionistas que bombardearam e continuam a bombardear todas as medidas de proteção ambiental–, explorar esse cenário de poucas luzes é um excelente negócio. Acho que estamos fritos.

    FOLHA

     

     

     

     

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