'Ripley' submerge na solidão de personagem clássico com suspense delicado e sombrio
Luciana Coelho
É difícil odiar Tom Ripley, o vilão incerto desfiado em cinco livros de Patricia Highsmith. Mas é difícil, também, gostar de Tom Ripley, o anti-herói pusilânime de filmes e peças adaptados da obra da romancista americana morta em 1995. "Ripley", versão mais recente que estreou nesta quinta (4) como minissérie na Netflix, é a que mais sublinha esse caráter ambíguo do personagem.
Há alguns culpados para isso.
O primeiro é o ator Andrew Scott, que já brilhara em "Fleabag" e "Todos Nós Desconhecidos". Com uma delicadeza sombria e melancólica, ele acentua essa fugacidade do personagem, dotando-lhe de uma espécie de redoma que o protege e o aparta do mundo, em uma solidão perpétua alimentada pelas coisas que não tem ou perdeu: dinheiro, amigos, amantes, família, reconhecimento, propósito.
Já houve ripleys de Alain Delon, Matt Damon, John Malkovich. O Ripley de Scott é impenetrável, e, ao mesmo tempo, vulnerável entre gestos hesitantes que só ganham segurança quando ele está falsificando ou se passando por alguém.
Outro é Steven Zaillan, roteirista de "A Lista de Schindler", que faz dessa desconexão do protagonista um trunfo. Sua obra frequentemente exalta heróis improváveis, via de regra solitários. Aqui é que ele acumula bravamente a função de diretor, após parcerias com Steven Spielberg e Martin Scorsese.
E há Robert Elswit, cuja fotografia cristalina em preto e branco sublinha a solidão do personagem a cada quadro. Elswit, que já havia feito mágica nos filmes "Boa Noite e Boa Sorte" e Sangue Negro" —este lhe valeu um Oscar—, catalisa para o espectador os sentimentos de Ripley nas muitas cenas com água. Plácidas na superfície e revoltas ou sombrias abaixo dela, o mar da série espelha o personagem de Scott.
Por fim, claro, há a própria Highsmith, a autora genial de "Pacto Sinistro" e "Carol", que pôs muito de sua solidão e seu cinismo com o mundo neste personagem, criado com sutilezas e nuances suficientes para nos fascinar sem nos impor veredictos.
A saber, Ripley é um trambiqueiro que vive em Nova York e, ao receber a oferta de um milionário para persuadir um herdeiro a voltar da Europa, penetra na "dolce vita" na Costa Amalfitana.
Uma vez na Itália, ele se torna obcecado pelo alvo de sua missão, o "bon vivant" Dickie Greenleaf (Johnny Flynn), e ressentido de todos que concorrem por sua atenção, como a namorada Marge —Dakota Fanning, muito melhor do que a versão bobinha de Gwyneth Paltrow no filme de 1999— e o amigo Freddie —Elliot Sumner nesta versão, um tanto ofuscado pelo da anterior, Philip Seymour Hoffman.
Aos poucos, os crimes de Ripley ganham estatura, e ele só se sente bem quando finge ser outra pessoa. Assim, passa a viver em constante fuga, metafórica e literalmente.
O livro foi escrito em 1955, a minissérie transcorre nos anos 1960. Seria tentador "atualizar" o enredo, mas o ar anacrônico de algumas situações, como a impossibilidade de Ripley se reconhecer como homossexual, mostram que a culpa e a paranoia que o personagem experimenta não estejam tão no passado assim.
A minissérie "Ripley", em oito episódios, está disponível na Netflix
FOLHA