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    sábado, março 16, 2024

    ENTÃO PODE?

     


     

     MARCILIO GODOI

    Há na vida dos escritores o momento do clique, da mini epifania de se saber ou se sugerir ou se desafiar ali, epa, eu quero é fazer isso!
     
    É famosa a história em que García Gabo Marquez nos conta, de quando leu Kafka pela primeira vez, e logo naquele primeiro parágrafo em que Gregor Samsa acorda monstro, ele pensa e se pergunta: "então pode isso"? — E então parte, do emprego nos telégrafos, para a escrita.
     
    Ontem, conversando com o querido autor Mário Prata, ele me contou o "então pode?" dele. Foi quando leu em "O encontro marcado", de Fernando Sabino, o trecho em que Eduardo Marciano, o protagonista, ainda menino, tendo uma ereção, grita: "Mãe, tem um osso no meu pipiu!". Mario, que também ainda era garoto, pensou exatamente o mesmo que o autor de "A incrível e triste história de Cândida Erêndira e sua avó desalmada": "como? então é possível se dizer isso num livro?"
     
    Marçal Aquino também revela que quando leu o mergulho existencial, a metafísica da traição, em Luiz Silva, narrador de "Angústia", de Graciliano Ramos, teve a amostra decisiva de que precisava e a certeza de que era com aquilo que queria "mexer".
     
    Revolvendo minha leituras de garoto, dei-me conta de que quase nunca lia e menos ainda com essa possibilidade, mesmo que remota, de me dar ali a imaginar que um dia me tornasse escritor.
    Confesso que o primeiro autor que li e pensei "puxa, queria ter escrito isso", o que equivaleria ao meu "então, pode?" foi Fernando Pessoa. Eu já não era tão rapazinho, tinha 20 anos, e fui contratado para fazer o logotipo para uma livraria chamada "Agêcia Quality", mas a dona só podia me pagar com livros, lembro que tinha acabado de se separar e ficara com um importante acervo. Como eu não podia ficar sem a oportunidade de trabalho, aceitei e entre os livros que peguei veio um estranho "Livro do desassossego", de um tal Bernardo Soares. 
     
    Era uma coisa formidável, porque não era romance, conto, poesia, nem crônica não era. Eram apenas trechos em prosa poética um tanto desiludida que batiam tão perfeitamente com a minha sensação do mundo que passei eu também a me dizer, "então pode?", é possível escrever-se assim, sem um rumo definido?
     
    Dez, quinze anos depois quando li "Quase memória", do Cony, tive revelação parecida. Aquele pai, aquele pacote, aquele mistério: "Era a letra de meu pai. A letra e o modo. Tudo no embrulho o revelava, inteiro, total. Só ele faria aquelas dobras no papel, só ele daria aquele nó no barbante ordinário, só ele escreveria meu nome daquela maneira, acrescentando a função que também fora a sua. Sobretudo, só ele destacaria o fato de alguém ter se prestado a me trazer aquele embrulho (...) Até mesmo o cheiro - pois o envelope tinha um cheiro - era o cheiro dele, de fumo e água de alfazema que gostava de usar, metade por vaidade, metade por acreditar que a alfazema cortava o mau-olhado, do qual tinha hereditário horror. Recente, feito e amarrado há pouco, tudo no envelope o revelava: ele, o pai inteiro, com suas manias e cheiros. Apenas uma coisa não fazia sentido. Estávamos - como já disse - em novembro de 1995. E o pai morrera, aos noventa e um anos, no dia 14 de janeiro de 1985."
     
    Abismado com aquele memorialismo íntimo, lembro-me que, modesta, mas decididamente me prometi, se isso é possível, se "então pode", e se me for alcançado sonhar, quero fazer isso um dia na vida.
     
    (Foto: Dominic Walter)

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