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    quinta-feira, fevereiro 29, 2024

    VINICIN

     

     


    Dorrit Harazim 

     Como não aplaudir o garoto de Nova Iguaçu que na semana passada salvou três vidas durante o arrastão d’água na Baixada?

    A sessão mensal do Conselho de Segurança da ONU da última quinta-feira, presidida pela embaixadora da Guiana, Carolyn Rodrigues-Birkett, tinha tudo para ser tediosa. Até o momento em que o microfone foi passado ao secretário-geral da ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF), Christopher Lockyear. Avesso a protagonismos, o dirigente britânico da organização humanitária detentora do Nobel da Paz falou por dez minutos sem qualquer fiapo de estridência. Não carecia. Percorreu 60 parágrafos de frases curtas que emitiam um grito de socorro/acusação aos donos do poder: sejam humanos! Interrompam já a aniquilação de vida em Gaza. Recomenda-se aqui o acesso à versão escrita do apelo de Lockyear, pois palavras escritas cravam mais fundo em nosso pensar que as ouvidas. Palavras, já ensinou José Saramago, não são inocentes nem impunes. Devem ser ditas e pensadas de forma consciente, para não saírem da boca sem antes subir à mente como algo que serve apenas para comunicar.

    O grito por Gaza precisará formar um coro sinfônico para poder desembocar na criação de um Estado palestino, de papel passado. Trata-se de uma engenharia geopolítica urgente, que necessita de artífices obstinados, por vezes até abnegados. Os palestinos não são um problema, repete-se aqui, são um povo. E a solução gritante está à vista de todos. Nesse meio de caminho em que o mundo se desencontra, merecem desdém tanto protagonistas acovardados quanto autoproclamados candidatos a heróis da História.

    Na verdade, é somente na história com “h”minúsculo, nas miudezas da vida cotidiana, que surgem heróis universais. Como não aplaudir o garoto de Nova Iguaçu que na semana passada salvou três vidas durante o arrastão d’água na Baixada Fluminense? Marcos Vinicius de Souza Vasconcelos saiu do anonimato quando as redes sociais captaram e viralizaram seu ato de humanidade absoluta, instintiva, gratuita. Ele fez o Brasil se sentir bonito, nos deu orgulho alheio e merece reconhecimento múltiplo, afagos, ajuda, gratidão. Mais que tudo, esse jovem brasileiro periférico é heroico por ter conseguido chegar vivo aos 20 anos. “Vinicin” é, ao mesmo tempo, o retrato vivo e a exceção do Brasil do Censo 2022, em que pretos e pardos representam 55% da população, 4,8 milhões de brasileiros não têm acesso adequado à água, 24,3% sem esgoto adequado, apenas 47% conseguiram completar o ensino médio, 66 jovens entre 15 e 25 anos são mortos por dia, e 4,22 pessoas negras são mortas por hora.

    Republica-se aqui a íntegra do seu singelo depoimento à repórter Jéssica Marques, como forma de agradecimento a esse grande menino do Rio:

    — Meu nome é Marcos Vinicius, tenho 20 anos, mas todos me chamam de Vinicin. Vim de lar pobre e passei por muitas provações. Há nove anos, perdi meu bem mais precioso: minha mãe, dona Angela, em 2015. Ela se deixou levar pela depressão depois que meu irmão mais velho seguiu um caminho que ela jamais desejou, o da criminalidade. Tivemos que mudar de casa, de bairro e até de vida. Um dia meu irmão se foi. Minha mãe partiu seis meses depois. Em 2017, meu irmão do meio também partiu, mas por doença. Fui morar com minha tia, a animada dona Janete. Ela tem um jeito diferente de ver a vida e me ajudou a seguir os planos. Terminei o ensino médio, estudei em escola pública, servi no Exército. Há oito meses busco emprego de carteira assinada. Atualmente, sou funcionário temporário de uma empresa de logística. Na quarta-feira, eu voltava do serviço, por volta das 20h, e chovia bastante. O ônibus da empresa mudou o trajeto para fugir dos alagamentos. O condutor foi para a Rua Ministro Lafaiete, perto da Via Light. Quando a água subiu, tive medo. Avistei um carro preto, com as janelas abertas e uma mulher pedindo socorro. Naquele momento, não fazia ideia de que havia duas crianças dentro. Eu era o único homem ali. Não pensei duas vezes. Abri a porta do ônibus e pedi ajuda para chegar no carro. Tudo que eu queria era salvar os bebês e a moça. Não perguntei seu nome, nem deu tempo. Na hora do resgate, não trocamos nenhuma palavra a não ser “segura na minha mão”. Peguei a primeira bebê no colo e a segurei com muita força para que ela não caísse na água. Fiz o mesmo com a segunda neném e depois com a mãe delas. Ela pedia para eu segurar as bolsas. Se demorasse mais um pouco, talvez a família fosse arrastada. Ficamos presos no ônibus por duas horas. Meu celular descarregou e não consegui avisar à minha tia o que estava acontecendo. Fui para casa com um sorriso no rosto. Deu tristeza chegar e ver a casa alagada. Cheguei querendo contar que salvei vidas, mas deparei com um cenário horrível. Geladeira queimada, armários encharcados, o sofá não dava para sentar. Infelizmente, a gente aprende a conviver com essa realidade, mas não se acostuma.

    GLOBO  

    ILUSTRAÇÃO MARCELO

     

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