Fragmentos de textos e imagens catadas nesta tela, capturadas desta web, varridas de jornais, revistas, livros, sons, filtradas pelos olhos e ouvidos e escorrendo pelos dedos para serem derramadas sobre as teclas... e viverem eterna e instanta neamente num logradouro digital.
Desagua douro de pensa mentos.
quinta-feira, novembro 30, 2023
Kissinger, criminoso de guerra
JAMIL CHADE
Em 16 de setembro de 1976, diplomatas americanos alertaram Henry Kissinger, que morreu na noite desta quarta-feira aos 100 anos,
sobre a existência e ação da Operação Condor, na América do Sul. Mas a
ordem de um dos ícones da política externa americana naquele momento foi
clara: arquivar qualquer denúncia que pudesse existir sobre o tema e
simplesmente não agir.
Dias
depois, em pleno centro de Washington, era assassinado o ex-chanceler
chileno Orlando Letelier, aliado de Salvador Allende. A vítima era
considerada como um dos principais nomes da organização de um governo do
Chile no exílio, depois do golpe de Estado promovido por Augusto
Pinochet em 1973.
Seriam
necessários mais 30 anos para que John Kerry entregasse para Michelle
Bachelet um pendrive com mais de 300 documentos secretos dos EUA sobre o
caso que abalou a região.
Em
seu livro "O Brasil contra a Democracia", o pesquisador e jornalista
Roberto Simon também publicou revelações importantes sobre o papel de
Kissinger na América do Sul e, em especial, no Chile.
Num
trecho, ele conta como havia, no final dos anos 60, uma pressão interna
no governo dos EUA para que Richard Nixon prestasse mais atenção no
"quintal americano".
"O
maior argumento de autoridade, porém, vinha do general Vernon Walters, o
ex-adido no Rio por quem Nixon tinha adoração. Nos dias entre a eleição
e a posse de Allende, o general foi enviado ao Brasil e à Argentina
para consultas com militares dos dois países. Ao final da viagem,
Walters escreveu um memorando no qual defendia três pontos:
o aumento das vendas de armas a países-chave da região;
a aceitação do papel dos militares como guardiões da ordem, sem julgá-los pelos "padrões da Constituição americana";
e a ideia de que, se os Estados Unidos não ocupassem o espaço latino-americano, outra potência global o faria.
"Na
cópia do relatório que chegou em suas mãos, Nixon escreveu à caneta um
recado a Kissinger: "K, leia este memorando do Walters novamente e faça
com que ele seja implementado em todos os seus aspectos". A palavra
"todos" o presidente marcou com um grifo duplo".
E assim ocorreu.
Celebrado
como um grande intelectual e artífice do mundo no século 20, Kissinger
passou a ser acusado de ter ignorado de forma deliberada ou por omissão
milhões de vidas humanas. Ou, como diz a escritora Juliana Monteiro, o
escândalo de chamar essas mortes de "dano colateral".
Havia um argumento maior em jogo: a busca pela hegemonia dos EUA.
Em
2001, o Arquivo de Segurança Nacional da Universidade George Washington
publicou documentos secretos que confirmaram pela primeira vez que o
governo indonésio lançou sua sangrenta invasão do Timor Leste em
dezembro de 1975 com a concordância do presidente Gerald Ford e do
secretário de Estado Henry Kissinger.
Cerca de 200.000 timorenses morreram durante os vinte e cinco anos de ocupação.
Naquele
mês de 1975, Ford e Kissinger se reuniram com o então presidente
indonésio Suharto durante uma breve escala em Jacarta, enquanto voltavam
de Pequim. "Cientes de que Suharto tinha planos de invadir o Timor
Leste e que a invasão era legalmente problemática —em parte devido ao
uso pela Indonésia de equipamentos militares dos EUA que o Congresso
havia aprovado apenas para autodefesa— Ford e Kissinger queriam garantir
que Suharto agisse somente depois que eles retornassem ao território
dos EUA", afirmou a Universidade, ao publicar os dados.
"A
invasão ocorreu em 7 de dezembro de 1975, no dia seguinte à partida
deles, resultando na ocupação violenta e sangrenta do Timor Leste por um
quarto de século. Henry Kissinger sempre negou que tenha havido
qualquer discussão substancial sobre o Timor Leste durante a reunião com
Suharto, mas um telegrama recém-desclassificado do Departamento de
Estado de dezembro de 1975 confirma que essa discussão ocorreu e que
Ford e Kissinger aconselharam Suharto que 'é importante que tudo o que
você fizer seja bem-sucedido rapidamente'".
As revelações também apontaram que:
Quando
Suharto disse a Ford e Kissinger que estava prestes a ordenar uma
invasão, a resposta foi apenas uma advertência de que "seria melhor que
isso fosse feito depois que voltássemos" (a invasão começou no dia
seguinte).
Kissinger
disse a Suharto que o uso de armas fornecidas pelos EUA na invasão
--equipamento que, de acordo com a lei dos EUA, não poderia ser usado em
operações militares ofensivas-- "poderia criar problemas", mas indicou
que eles poderiam "interpretar" a invasão como autodefesa.
Em
12 de agosto de 1975, alguns dias depois de uma tentativa de golpe no
Timor Leste, Kissinger observou que uma tomada de poder pela Indonésia
ocorreria "mais cedo ou mais tarde".
Seis
meses após a ocupação do Timor Leste, Kissinger reconheceu aos altos
funcionários do Departamento de Estado que a ajuda militar dos EUA havia
sido usada "ilegalmente" e deu a entender suas próprias dúvidas sobre a
invasão: Washington não havia retomado "de bom grado" as relações
normais com Jacarta.
Pelas
contas do historiador da Universidade de Yale, Greg Grandin, entre 1969
e 1976, a política externa de Kissinger foi responsável por 3 a 4
milhões de mortos.
Em
recentes artigos publicados, o vencedor do prêmio Pulitzer de 2020
ainda conta como Kissinger aconselhou Nixon a bombardear de forma
secreta o Camboja, país que sequer estava em guerra contra os EUA.
"Agora
sabemos muito mais sobre os outros crimes de Kissinger, o imenso
sofrimento que ele causou durante seus anos no cargo público. Ele deu
luz verde a golpes de Estado e possibilitou genocídios. Disse aos
ditadores que matassem e torturassem rapidamente, vendeu os curdos e
comandou a operação malfeita para sequestrar o general chileno René
Schneider (na esperança de atrapalhar a posse do presidente Salvador
Allende), que resultou no assassinato de Schneider. Sua mudança
pós-Vietnã para o Oriente Médio deixou a região em caos, preparando o
terreno para crises que continuam a afligir a humanidade", escreveu.
Mais
recentemente, ele apoiou a guerra contra Saddam Hussein e, quando em
1999 o juiz espanhol Baltazar Garzón pediu a extradição de Augusto
Pinochet, Kissinger foi um dos personagens internacionais a sair em
apoio ao ditador chileno.
Na
lápide de Kissinger certamente devem constar seus feitos para desenhar o
mundo no qual vivemos hoje. Ali, também deve constar o infame prêmio
Nobel da Paz que o americano recebeu, alvo de constrangimento até hoje
para Oslo.
Mas, na pedra, também estão as sombras de milhares de nomes de vítimas de suas políticas.