Fascismo Andino
SERGIO AUGUSTO
E assim se passaram 50 anos. Parece que foi ontem. Ou anteontem, pois ainda faltavam 28 anos para o segundo histórico 11 de Setembro de nosso tempo – por acaso na terra dos patrocinadores da primeira razia.
O ataque às torres gêmeas de Nova York resultou em 3 mil mortos; o golpe militar no Chile de Salvador Allende ceifou muito mais vidas ao longo dos 17 anos em que seus executantes, doutrinados e bancados pela CIA e pelo Pentágono, se mantiveram no poder.
11.09.1973. Às 7h, Valparaíso deslancha a insurreição, sob a vigilância da Operação Unitas (exercícios navais liderados pela Marinha dos EUA). Às 14h15, após três horas de resistência no Palácio de la Moneda, em Santiago, Allende é morto; o golpe dá certo; e o reinado do terror tem início, sob os cascos do general Augusto Pinochet. Saldo final da ditadura: 70 mil detidos, 30 mil torturados, 3.500 assassinados.
Por uma lamentável coincidência, aqui também a serpente chocara um ovo. Enfrentávamos o período mais duro e sórdido de nossa ditadura e, por tabela, da censura, que fazia vista grossa para as gozações e críticas aos EUA de Nixon, mas protegia os déspotas das vizinhanças, irmanados na Operação Condor. No Pasquim, só com brincadeiras inócuas, como batizar vinhos de Chateau Pinochet e Chateau Bordaberry, conseguíamos passar pelos catões verde-oliva.
O martírio a que a gorilada chilena submeteu o cantor e compositor Victor Jara, sequestrado, torturado e executado com 44 tiros, logo no quinto dia do regime militar, ainda mobilizava a intelectualidade europeia no ano seguinte. Esse crime de Estado só seria punido na segunda-feira passada, com seus sete verdugos,
todos ex-oficiais, condenados a penas que chegaram a 25 anos de prisão. A justiça tardou meio século, mas não falhou.
Em vilegiatura pelos dois lados do Atlântico em 1974, perdi a conta de quantos manifestos contra o fascismo instalado no Chile me passaram pelas mãos e quantas mostras de filmes de Miguel Littin, Raúl Ruiz, Patricio Guzmán, Aldo Francia, Helvio Soto e outros cineastas atraídos pela “primavera allendista” peguei em Paris e Roma, no espaço de quatro meses. Julio Cortázar doou a um fundo de ajuda aos exilados chilenos o Prêmio Médicis conquistado pelo Livro de Manuel.
Revi há dias as três partes do documentário de Guzmán, pasquim (tem no YouTube), impressionante crônica dos meses que antecederam e se seguiram à derrubada de Allende. Impressionam, sobretudo, sua atualidade e suas semelhanças – o mesmo esquema putchista, o mesmo caos fabricado, a mesma retórica castrense infectada pela Guerra Fria, a mesma preconceituosa e hipócrita parvoíce da classe média – com o que aconteceu no Brasil, em 1964, e por pouco não se repetiu meses atrás. Ovulando sempre essa serpente.
ESTADÃO