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    quarta-feira, agosto 23, 2023

    Adeus a uma velha estante

     

     CORA RONAI

    Durante muitos e muitos anos a estética da minha vida doméstica foi uma coisa meio mambembe. Os ambientes eram simpáticos e alegres -- eu nem saberia viver de outra maneira -- mas o dinheiro, como um cobertor curto, não dava para tudo. Tendo comprado o apartamento, não podia comprar os móveis; tendo comprado os móveis, não podia trocar o chão; tendo trocado o chão, não podia fazer a reforma do banheiro. Era preciso escolher. E a primeira escolha que fiz, assim que a poeira da mudança assentou, foi uma estante na sala, grande o suficiente para abrigar os meus discos, os meus livros e uma imensa tevê de 30 polegadas. Ela ocupava a extensão de uma parede, e era linda: toda em pau marfim, com frisos em rádica nas portas e um bonito detalhe em mármore no cantinho do bar.
    Fomos felizes juntas por vários anos. Quando a Sony Trinitron foi embora, porém, ela teve que sofrer uma modificação estrutural. Não ficou ruim, mas ali, sem que nenhuma de nós percebesse na hora, começou o fim da nossa relação. As pequenas prateleiras que entraram no vão antes ocupado pela televisão eram incongruentes, assim como o ressalto projetado para abrigar aquele monstrengo com seu descomunal tubo de imagem.
    Mais tarde, quando a música se mudou para a nuvem, a estante, que tinha recortes cuidadosamente projetados para abrigar uns tantos CDs, deu mais um passo em direção à obsolescência. Os CDs, ao contrário da TV, nunca foram embora; mas eu olhava para o espaço fantasma e para aqueles objetos agora desnecessários e sentia o passar do tempo.
    Passei os dois últimos anos vendo a minha velha estante com um olhar crítico. Com as mudanças que a vida fez na casa e em mim, o que era elegância virou excesso, o que era moderno ficou datado.
    Comecei a implicar com a madeira escurecida pela claridade, com o espaço que ela tomava, com o seu testemunho dos anos 90. Perdi o gosto de arrumá-la, e os livros e objetos empilhados só fizeram piorar a situação.
    Ainda assim, relutava em trocá-la. Com toda a sua inadequação ao novo século, ela continuava sendo um belo móvel, sólido e eficiente, daqueles que as visitas elogiam, cheias de admiração: "Ah, hoje não se consegue mais fazer uma peça assim!" Eu pensava na nossa história, pensava em quanto tive que economizar para mandar fazê-la e na satisfação que senti quando ficou pronta, e ia adiando a decisão. Até que, de repente, de um dia para o outro, tomei coragem.
    Há três semanas ela foi começar vida nova numa instituição filantrópica em Itaipava; há cinco dias, uma nova estante ocupa o seu lugar. É o seu exato oposto, básica, magra, em ferro e madeira -- pouco ferro, pouca madeira. Pouca estante.
    Ainda não me acostumei com a mudança. É como se a casa tivesse cortado o cabelo, trocando os seus longos cachos louros por um corte castanho bem curtinho.
    Às vezes, de noite, quando estamos sozinhas na sala, a nova estante e eu, sinto um aperto no coração, imaginando como estará a minha velha amiga, e se será usada como era, ou se apenas as suas prateleiras serão reaproveitadas, como os órgãos doados de um corpo morto. Sinto que traí a sua confiança: ela nunca teria esperado isso de mim. Sinto até que traí a mim mesma, uma versão mais jovem de mim que tinha uma outra visão do mundo e da casa.
    Mas aí os livros por arrumar me olham da sua pilha e reviram os olhos metafóricos:
    -- Deixa de ser emotiva, Cora Rónai! Era só uma estante.
    Os livros por arrumar.
    Estamos falando de mais de vinte anos de livros, e de um tipo muito especial, aquele que os angloparlantes definem como coffee table books: livros grandes e vistosos, belos objetos de papel e tinta, comprados mais por capricho do que por necessidade.
    Muitos dos meus coffee table books estavam exilados nas prateleiras superiores, das quais nunca mais haviam descido; vários tinham desaparecido da minha lembrança, junto com as razões que me levaram a adquiri-los. Virar lentamente as suas páginas é reencontrar blocos do passado, numa espécie de arqueologia sentimental que expõe a longa galeria dos meus arrebatamentos -- história medieval, mergulho, design, tapetes orientais, livros e bibliotecas, fotografia, animais, cinema, mapas e globos, computadores, Egito Antigo, viagens, internet, as grandes guerras, Índia e China, Veneza e Constantinopla.
    Quanta coisa eu já soube. Quanta coisa eu já não esqueci.
    (O Globo, Segundo Caderno, 20.8.2015)

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