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    terça-feira, julho 04, 2023

    Meu Momento Peter Selles

     


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     SÉRGIO AUGUSTO

    O quarto 426 fica no quarto andar e eu precisava descer ao segundo para utilizar o lustrador de sapatos do único companheiro de viagem alojado em outro piso. Meus sapatos só não careciam de um trato na sola. Haviam passado toda a manhã da véspera na Disneylândia e o final da tarde na gravação de um show de Jerry Lewis dedicado ao filme a cuja estreia mundial, naquela noite, fôramos convidados.

    Esta é uma história do tempo em que eu ainda era “o benjamim da crítica de cinema” e Hollywood esbanjava extravagantes fortunas na promoção de seus potenciais hits. Quando? Bem, dali a 19 dias, um balaço arrebentaria os miolos do presidente Kennedy. Dali a 49 anos, Whitney Houston seria encontrada morta por uma overdose na banheira do quarto 434, oito portas depois da minha. E nunca mais o 434, em sinal de luto e superstição, hospedou ninguém.

    Estamos na tarde de 3 de novembro de 1963, no Beverly Hilton Hotel, no cruzamento dos bulevares Wilshire e Santa Monica, Los Angeles. Whitney morreria na véspera de receber seu sexto Grammy, em 2012, mas eu não iria perder a première de Deu a Louca no Mundo por causa de um par de sapatos incompatível com o traje a rigor exigido pelo cerimonial do Cinerama Dome Theatre, concluído em tempo recorde para o evento, em pleno Sunset Boulevard.

    Para disfarçar a aparência do meu calçado com os atributos de um lustrador só disponível no segundo andar e evitar o constrangimento de ser visto no elevador de chinelos nos pés e pisantes nas mãos, desci pelas escadas até o quarto 200 e qualquer coisa, e executei o serviço.

    Na hora de retornar ao 426, meu momento Peter Sellers: a porta de acesso às escadas não abria. E eu ali, confinado ao corredor, e a dar graças por não estar nu, como o personagem do Sabino, apenas descalço ou quase isso, torcendo para não topar com ninguém no elevador, muito menos com Ava Gardner e deusas do mesmo naipe.

    Minha súplica foi ouvida e no elevador adentrou apenas uma pessoa: Lizabeth Scott, femme fatale loura do cinema noir dos anos 1940-50 que não frequentava meu harém imaginário. Dia desses, alguém postou uma foto dela no Twitter, o que me inspirou a repercutir este fait divers possivelmente pouco interessante até para quem viu algum de seus filmes.

    Lizabeth era uma Veronica Lake sem a franja “peekaboo”, tinha o dobro da minha idade e já não filmava havia seis anos. Jamais foi nem seria o que Glenda Jackson significou para Julio Cortázar e seus cupinchas de juventude. Evitei cruzar meu olhar com o dela e só desocultei das costas a mão que escondia os sapatos quando paramos no quarto andar. Ela, “ladies first”, saltou na frente e eu respirei absurda e compreensivelmente aliviado por enfim ter dividido o mesmo elevador com Lizabeth Scott, não com Ava. Ou Jean Seberg. Ou Kim Novak. Ou Natalie Wood.

    ESTADÃO

     

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