Toda sociedade alicerçada no racismo tem medo de extirpá-lo, pois ele lhe aufere privilégio
DORRIT HARAZIM
A parte mais sensível do corpo de um urso é seu focinho. A informação, inútil para a maioria da população global, nunca foi mero fait divers para as seculares etnias de ciganos da Bulgária. Naquele pedaço dos Bálcãs, o controle de ursos pelo focinho era essencial para garantir a milenar forma de ganha-pão e entretenimento do povo roma: capturar, domesticar e treinar esses mamíferos de grande porte até que se tornassem servidores dóceis e atração ambulante. Com as narinas perfuradas por argolas de metal, os animais se sujeitavam a toda sorte de comandos inglórios, como dançar sobre patas traseiras ou ingerir bebidas alcoólicas.
Essa forma de entretenimento para humanos durou até o final do século XX. Foi somente com a implosão do bloco soviético, a que a Bulgária estava atrelada, que os ursos domesticados puderam empreender, também eles, a difícil transição do cativeiro para a liberdade. Não foi fácil. Quem melhor a descreveu foi o jornalista polonês Witold Szablowski, com “Dancing bears — True stories of people nostalgic for life under tyranny”, publicado cinco anos atrás, traduzido para uma dezena de línguas e já citado neste mesmo espaço. Retoma-se aqui o ângulo central da obra, mas para virá-la do avesso. O episódio de racismo escancarado contra o jogador brasileiro Vinícius Jr. , testemunhado pelo mundo na semana passada, serve de gancho para a releitura.
O livro de Szablowski, cujo estilo é equivocadamente comparado ao de seu portentoso conterrâneo Ryszard Kapuscinski, se divide em duas partes simétricas. Cada uma tem nove capítulos de títulos iguais, e eles se espelham. A primeira narra a história dos ursos, cujo cativeiro foi afrouxado por ONGs bem-intencionadas. A segunda trata da também complexa transição de sociedades comunistas para o capitalismo. Para os animais, a primeira etapa iniciou-se por liberdade vigiada (ou cativeiro mais civilizado) — eles precisaram ser ensinados a hibernar, foram castrados e, portanto, não conseguem se reproduzir, não sabiam sequer copular. Para horror dos ativistas encarregados de devolvê-los à natureza, alguns ursos, mesmo libertos de suas argolas, continuavam a erguer o corpanzil sobre duas patas para dançar como foram ensinados.
Outros, desnorteados, procuravam insistentemente com as patas dianteiras as argolas que não lhes aprisionavam mais as narinas. Um zoólogo ouvido pelo autor relatou que as equipes passavam horas observando os ursos para aferir o grau de liberdade de agressão instintiva que os animais conquistavam aos poucos.
— Eles passaram a viver numa espécie de laboratório de liberdade, onde os humanos lhes ensinavam a ser livres — explicou o autor em entrevista à National Public Radio dos Estados Unidos — A liberdade é complicada. Ela pode, até, ser muito penosa.
Assim como os ursos cativos não sabiam hibernar, não se alimentavam o suficiente no outono, por isso viravam osso no inverno, também as sociedades fechadas estavam mal preparadas para transitar por regimes mais democráticos, sempre sujeitos às turbulências do contraditório. Szablowski, inicialmente, colocara o atual czar russo Vladimir Putin na categoria dos adestradores, “o cara que sempre teve ursos, os usava e nunca soube fazer outra coisa na vida”. Mais recentemente, começou a se indagar se Putin e outros autocratas semelhantes não seriam, também, ursos amestrados, por não conhecerem outra vida. Cresceram não confiando em ninguém, desconhecem o funcionamento de instituições democráticas, são também prisioneiros do sistema por eles mantido.
É aqui que entra uma pergunta incômoda para o racismo secular que nesta semana mostrou seu focinho no estádio na Espanha.
E se os aprisionados neste mundo desigual não forem os ursos, e sim
seus amestradores — a civilização branca, incapaz de se libertar de sua
própria desumanidade? O supremacismo branco grita por medo de perder a
razão de ser. Não suporta a realidade de pertencermos todos à mesma
espécie animal. Quanto mais náufrago, maior a violência do negacionista.
Toda sociedade alicerçada no racismo tem medo de extirpá-lo, pois ele
lhe aufere privilégios. O Brasil é o primeiro da lista a precisar se
olhar no espelho para ter vergonha do que vê. A dor de ser negro, preto
ou pardo, no Brasil é de uma infâmia superlativa. Somos todos
coniventes.
GLOBO