Presa e perseguida na ditadura, Rita Lee desafiou repressão até o fim
BERNARDO MELLO FRANCO
A ditadura já agonizava quando Rita Lee compôs “Lança perfume”, em 1980. A música se tornaria um dos maiores sucessos de sua carreira. Antes disso, precisava passar pelo crivo da Polícia Federal.
Como exigia a lei, a letra viajou até Brasília. Foi parar na mesa de Laura Bastos, técnica da Divisão de Censura em Diversões Públicas. Escalada para proteger a moral e os bons costumes, a senhora não foi capaz de notar a referência às drogas no título da canção. Mas implicou com o penúltimo verso, que considerou malicioso.
“A letra musical em questão utiliza a expressão ‘Me deixa de quatro no ato’, que no contexto desenvolvido deixa margem para duplo sentido”, anotou. “Sendo assim, opino pela não liberação da mesma”, concluiu, antes de carimbar o documento.
Por alguma razão que não ficou registrada nos papéis, a PF relevou o parecer e liberou a música. Rita teria menos sorte com o álbum “Bombom”, de 1983. Das doze faixas, seis foram proibidas. Outras duas foram vetadas no rádio e na TV.
A gravadora recorreu, mas esbarraram no delegado Geová Lemos Cavalcante. Ele manteve os vetos e criticou o “uso de linguagem que fere o decoro público, divulga e induz aos maus costumes, imprópria à boa educação do povo”.
Rita foi uma das artistas mais perseguidas pela ditadura. Apesar das pressões, nunca se intimidou. Estava vacinada. Em 1976, havia sido presa sob acusação de porte de drogas. Grávida do primeiro filho, passou dez dias na cadeia, onde recebeu tratamento de estrela das outras detentas.
“A censura não vai muito com a minha cara, nem eu com a dela”, provocou, numa entrevista em 1984. No ano seguinte, ela interromperia um show para ironizar Solange Hernandes, a temida chefe da tesoura: “Há nove anos a senhora me censura. Venha tomar um cafezinho, quem sabe a senhora para de me prejudicar...”
Rita desafiou todo tipo de repressão. Foi amada pelos fãs e odiada por machistas, caretas e carolas. No show que marcaria sua despedida, em 2012, enfrentou PMs que revistavam a plateia com truculência. “Sou do tempo da ditadura. Vocês pensam que eu tenho medo?”, peitou, antes de ser detida por desacato à autoridade. Tinha 64 anos.
Cansada do papel de ovelha negra, a roqueira antecipou a aposentadoria.
Deixou os palcos e foi viver num sítio, mas não perdeu a irreverência.
Quando descobriu o câncer, resolveu homenagear o então presidente.
Batizou o tumor maligno de Jair.
GLOBO