Chico Buarque e o Brasil de ontem e hoje
Fernando de Barros e Silva
A canção que dá nome à turnê de Chico Buarque com Mônica Salmaso pertence à constelação de suas criações que orbitam a política. Que Tal um Samba? – este convite não existiria sem a dor filha da puta dos últimos anos. Assim como não conseguimos ouvir Vai Passar ou Pelas Tabelas, ambas de 1984, sem associá-las à campanha das Diretas Já, lá se vão quarenta anos. Vai passar/nesta avenida um samba popular, dizia a primeira. Quando ouvi a cidade de noite batendo as panelas/eu pensei que era ela voltando pra mim, ecoava a segunda. A promessa e a frustração históricas estão ali, encarnadas nas canções.
Mas a associação quase instantânea que fazemos ao ouvir Que Tal um Samba? – pelo menos nós, os mais velhos – é com Apesar de Você, o samba de 1970 que se converteu numa espécie de hino de resistência à ditadura. Lançado em meados daquele ano por um descuido da censura, o compacto (que trazia Desalento no lado B) foi recolhido das lojas um mês depois, por ordem dos militares. Mas já era tarde.
Apesar de você/amanhã há de ser/outro
dia./Eu pergunto a você/onde vai se escon-
der/da enorme euforia/Como vai proibir/
quando o galo insistir/em cantar – os ver-
sos que se insurgiam contra a ordem au-
toritária se espalharam por toda parte.
A música, porém, só seria relançada em
1978, no mesmo lp que trazia Cálice,
também censurada. No ano seguinte, a
Lei da Anistia seria aprovada no país.
Tudo isso é sabido. Mas as coisas sa-
bidas se tornaram nebulosas em tempos
de Brasil Paralelo. A lavagem cerebral
patrocinada pelo governo anterior dei-
xou sequelas imensas, ainda difíceis de
mensurar, nas pessoas, nas famílias, na
sociedade, no interior das instituições.
No final do ano passado, uma juíza do
Rio de Janeiro alegou que Chico Buar-
que não havia comprovado ser o autor
de Roda Viva, e, portanto, Eduardo
Bolsonaro poderia continuar usando a
canção em suas redes sociais. Depois de
tanta demência, que tal um samba?
Se Apesar de Você desafiava o regime
como quem coloca o dedo no nariz dos
generais – você vai pagar e é dobrado –, no
samba recente o desafio é de outra ordem
e se dirige a nós mesmos. O tom assertivo,
de enfrentamento contra um adversário
bem definido – hoje você é quem manda,/
falou, tá falado –, cede lugar a um convite
ao mesmo tempo comedido e afetuoso,
endereçado Paratodos ou para ninguém,
na forma de uma dúvida reiterada – que
tal? Não se trata mais de derrotar o inimigo
– era mais simples –, mas de remediar o
estrago; zerar o jogo; sair do fundo do poço.
O compositor nos chama para este
samba que é feito com categoria, com cal-
ma, mas também é um desafogo, um deva-
neio, tudo para esconjurar a ignorância e
desmantelar a força bruta. Se fossem ou-
tros os tempos, diríamos que é quase um
Plano Marshall em forma de poesia o que
nos propõe Chico Buarque nessa canção.
A reconstrução, ou o reencontro da civili-
zação brasileira consigo mesma, assume
várias imagens ao longo da música, a mais
bela delas quando Chico substitui samba
por filho e canta: Fazer um filho, que tal?/
Pra ver crescer, criar um filho/Num bom
lugar, numa cidade legal/Um filho com a
pele escura,/com formosura/Bem brasileiro,
que tal?/Não com dinheiro,/mas a cultura.
No lugar da pátria verde-amarela, um
bom lugar, uma cidade legal; no lugar do
cidadão de bem, um filho com a pele es-
cura, bem brasileiro, menos ligado em
dinheiro (ou armas) do que na cultura.
O contraponto, um pouco esquemático,
fica na minha conta. A canção é mais su-
til. Na sequência desses versos, Chico per-
gunta Que tal uma beleza pura/no fim da
borrasca?/Já depois de criar casca/e perder
a ternura. Ao evocar a canção de Caetano
Veloso de 1979 – Beleza Pura começa
justamente pelos versos: Não me amarra
dinheiro, não!/ Mas formosura./Dinheiro
não!/ A pele escura –, Chico o faz na forma
de pergunta. E acrescenta que essa utopia
brasileira, chamemos assim a beleza pura,
vem depois da queda – perdemos a ternu-
ra, criamos casca, elegemos e quase reele-
gemos Jair Bolsonaro. Que tal?
Nenhuma das canções memoráveis
que mencionei no início – nem Ape-
sar de Você, nem Vai Passar, nem
Pelas Tabelas – faz parte do repertório do
espetáculo de Chico Buarque. Cada uma
a seu modo, elas marcaram momentos em
que, apesar de tudo, era mais fácil acredi-
tar no Brasil – tínhamos um encontro
com o futuro. Não temos mais.
Basta mencionar, para ficar no exem-
plo da vez, o drama da Amazônia, onde
se vive, literalmente, de apagar incêndios.
O filósofo Paulo Arantes usou uma ima-
gem de grande acuidade ao comparar o
garimpo ilegal a uma espécie de super-
cracolândia e sugerir que as operações de
desmonte da extração e do tráfico das ri-
quezas minerais da floresta tendem a re-
produzir a lógica da guerra às drogas nas
periferias das grandes cidades. Imaginan-
do buscar soluções sustentáveis, é grande
a chance de estarmos muito mais próxi-
mos da administração de um colapso.
O horizonte histórico do governo Lula
seria o da redução de danos, num ambien-
te muito mais desfavorável do que aquele
encontrado em 2003, na correlação de
forças políticas, nas expectativas econômi-
cas, na fisionomia e nos humores da socie-
dade. Isso se traduz de forma difusa na
sensação de envelhecimento precoce de
um governo que mal começou.
Para voltar ao samba, apesar do mila-
gre político ocorrido em outubro passa-
do, continuamos menos para beleza
pura do que para Bancarrota Blues –
essa, sim, incluída no espetáculo. A can-
ção de 1985, uma parceria com Edu
Lobo, é uma espécie de alegoria debo-
chada do país insolvente, àquela altura
às voltas com o fantasma de uma dívida
externa impagável. Menos marcada his-
toricamente do que outras canções polí-
ticas de Chico, Bancarrota Blues trata,
no fundo, de um passado colonial que
não passa, o que lhe confere uma atua-
lidade impressionante à luz da dissolu-
ção do país nos últimos anos. Quando
ela surge no palco, já perto do final do
show, é um grande acontecimento.
O Brasil está representado na canção
por uma fazenda que se oferece à venda
pela voz de um latifundiário à beira da
falência. Ele começa por informar aos
interessados que lá dá jerimum,/dá muito
mamão,/pé de jacarandá. Novos atrativos
surgem na estrofe seguinte: tem suru-
bim,/tem isca pra anzol,/mas nem tem
que pescar. Mais adiante, as delícias do
lugar se multiplicam: os diamantes rolam
no chão,/o ouro é poeira,/muita mulher
pra passar sabão,/papoula pra cheirar.
Melhor que isso, só o paraíso reservado
para o final: negros quimbundos,/diversos
açoites,/doces lundus/pra nhonhô sonhar.
A enumeração dos itens ofertados se-
gue a lógica de uma afronta crescente
– do jerimum aos negros quimbundos,
passando pelos diamantes que rolam no
chão e pelas mulheres que servem para
passar sabão, ofende-se primeiro o bom
senso e afasta-se a seguir qualquer com-
promisso com a dignidade humana e a
vida civilizada. Conforme escala na di-
reção do abominável (que também é, na
sua perspectiva, o mais desfrutável), o
proprietário vai se tornando mais e mais
desesperado para vender. Ao final de
cada estrofe, a mesma pergunta é repe-
tida com variações – Quanto você dá?;
Quanto quer pagar?; Quanto vai pagar?;
Que é que você diz?; Deixe algum sinal!
– configurando uma espécie de liquida-
ção da própria linguagem.
O que o proprietário chama de éden
tropical e atribui à graça de Deus é, na
verdade, um empreendimento colonial-
escravocrata que ele tenta passar adiante
a preço de banana no momento em que
se torna inviável e dele não se pode ex-
trair mais nada. Foi mais ou menos isso
o que fez a elite brasileira quando entre-
gou o país nas mãos de Bolsonaro. J
PIAUI