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  • O BRASIL EH O QUE ME ENVENENA MAS EH O QUE ME CURA (LUIZ ANTONIO SIMAS)

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    Fragmentos de textos e imagens catadas nesta tela, capturadas desta web, varridas de jornais, revistas, livros, sons, filtradas pelos olhos e ouvidos e escorrendo pelos dedos para serem derramadas sobre as teclas... e viverem eterna e instanta neamente num logradouro digital. Desagua douro de pensa mentos.


    quarta-feira, abril 19, 2023

    Chico Buarque e o Brasil de ontem e hoje

      


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    Fernando de Barros e Silva

    A canção que dá nome à turnê de Chico Buarque com Mônica Salmaso pertence à constelação de suas criações que orbitam a política. Que Tal um Samba? – este convite não existiria sem a dor filha da puta dos últimos anos. Assim como não conseguimos ouvir Vai Passar ou Pelas Tabelas, ambas de 1984, sem associá-las à campanha das Diretas Já, lá se vão quarenta anos. Vai passar/nesta avenida um samba popular, dizia a primeira. Quando ouvi a cidade de noite batendo as panelas/eu pensei que era ela voltando pra mim, ecoava a segunda. A promessa e a frustração históricas estão ali, encarnadas nas canções.

    Mas a associação quase instantânea que fazemos ao ouvir Que Tal um Samba? – pelo menos nós, os mais velhos – é com Apesar de Você, o samba de 1970 que se converteu numa espécie de hino de resistência à ditadura. Lançado em meados daquele ano por um descuido da censura, o compacto (que trazia Desalento no lado B) foi recolhido das lojas um mês depois, por ordem dos militares. Mas já era tarde.

    Apesar de você/amanhã há de ser/outro
    dia./Eu pergunto a você/onde vai se escon-
    der/da enorme euforia/Como vai proibir/
    quando o galo insistir/em cantar – os ver-
    sos que se insurgiam contra a ordem au-
    toritária se espalharam por toda parte.
    A música, porém, só seria relançada em
    1978, no mesmo lp que trazia Cálice,
    também censurada. No ano seguinte, a
    Lei da Anistia seria aprovada no país.
    Tudo isso é sabido. Mas as coisas sa-
    bidas se tornaram nebulosas em tempos
    de Brasil Paralelo. A lavagem cerebral
    patrocinada pelo governo anterior dei-
    xou sequelas imensas, ainda difíceis de
    mensurar, nas pessoas, nas famílias, na
    sociedade, no interior das instituições.
    No final do ano passado, uma juíza do
    Rio de Janeiro alegou que Chico Buar-
    que não havia comprovado ser o autor
    de Roda Viva, e, portanto, Eduardo
    Bolsonaro poderia continuar usando a

     canção em suas redes sociais. Depois de
    tanta demência, que tal um samba?

     
    Se Apesar de Você desafiava o regime
    como quem coloca o dedo no nariz dos
    generais – você vai pagar e é dobrado –, no
    samba recente o desafio é de outra ordem
    e se dirige a nós mesmos. O tom assertivo,
    de enfrentamento contra um adversário
    bem definido – hoje você é quem manda,/
    falou, tá falado –, cede lugar a um convite
    ao mesmo tempo comedido e afetuoso,
    endereçado Paratodos ou para ninguém,
    na forma de uma dúvida reiterada – que
    tal? Não se trata mais de derrotar o inimigo
    – era mais simples –, mas de remediar o
    estrago; zerar o jogo; sair do fundo do poço.

     
    O compositor nos chama para este
    samba que é feito com categoria, com cal-
    ma, mas também é um desafogo, um deva-
    neio, tudo para esconjurar a ignorância e
    desmantelar a força bruta. Se fossem ou-
    tros os tempos, diríamos que é quase um
    Plano Marshall em forma de poesia o que
    nos propõe Chico Buarque nessa canção.

     
    A reconstrução, ou o reencontro da civili-
    zação brasileira consigo mesma, assume
    várias imagens ao longo da música, a mais
    bela delas quando Chico substitui samba
    por filho e canta: Fazer um filho, que tal?/
    Pra ver crescer, criar um filho/Num bom
    lugar, numa cidade legal/Um filho com a
    pele escura,/com formosura/Bem brasileiro,
    que tal?/Não com dinheiro,/mas a cultura.
    No lugar da pátria verde-amarela, um
    bom lugar, uma cidade legal; no lugar do
    cidadão de bem, um filho com a pele es-
    cura, bem brasileiro, menos ligado em
    dinheiro (ou armas) do que na cultura.

     
    O contraponto, um pouco esquemático,
    fica na minha conta. A canção é mais su-
    til. Na sequência desses versos, Chico per-
    gunta Que tal uma beleza pura/no fim da
    borrasca?/Já depois de criar casca/e perder
    a ternura. Ao evocar a canção de Caetano
    Veloso de 1979 – Beleza Pura começa
    justamente pelos versos: Não me amarra
    dinheiro, não!/ Mas formosura./Dinheiro
    não!/ A pele escura –, Chico o faz na forma
    de pergunta. E acrescenta que essa utopia
    brasileira, chamemos assim a beleza pura,
    vem depois da queda – perdemos a ternu-
    ra, criamos casca, elegemos e quase reele-
    gemos Jair Bolsonaro. Que tal?

     
    Nenhuma das canções memoráveis
    que mencionei no início – nem Ape-
    sar de Você, nem Vai Passar, nem
    Pelas Tabelas – faz parte do repertório do
    espetáculo de Chico Buarque. Cada uma
    a seu modo, elas marcaram momentos em
    que, apesar de tudo, era mais fácil acredi-
    tar no Brasil – tínhamos um encontro
    com o futuro. Não temos mais.

     
    Basta mencionar, para ficar no exem-
    plo da vez, o drama da Amazônia, onde
    se vive, literalmente, de apagar incêndios.
    O filósofo Paulo Arantes usou uma ima-
    gem de grande acuidade ao comparar o
    garimpo ilegal a uma espécie de super-
    cracolândia e sugerir que as operações de
    desmonte da extração e do tráfico das ri-
    quezas minerais da floresta tendem a re-
    produzir a lógica da guerra às drogas nas
    periferias das grandes cidades. Imaginan-
    do buscar soluções sustentáveis, é grande
    a chance de estarmos muito mais próxi-
    mos da administração de um colapso.

     
    O horizonte histórico do governo Lula
    seria o da redução de danos, num ambien-
    te muito mais desfavorável do que aquele
    encontrado em 2003, na correlação de
    forças políticas, nas expectativas econômi-
    cas, na fisionomia e nos humores da socie-
    dade. Isso se traduz de forma difusa na
    sensação de envelhecimento precoce de
    um governo que mal começou.

     
    Para voltar ao samba, apesar do mila-
    gre político ocorrido em outubro passa-
    do, continuamos menos para beleza
    pura do que para Bancarrota Blues –
    essa, sim, incluída no espetáculo. A can-
    ção de 1985, uma parceria com Edu
    Lobo, é uma espécie de alegoria debo-
    chada do país insolvente, àquela altura
    às voltas com o fantasma de uma dívida
    externa impagável. Menos marcada his-
    toricamente do que outras canções polí-
    ticas de Chico, Bancarrota Blues trata,
    no fundo, de um passado colonial que
    não passa, o que lhe confere uma atua-
    lidade impressionante à luz da dissolu-
    ção do país nos últimos anos. Quando
    ela surge no palco, já perto do final do
    show, é um grande acontecimento.

     
    O Brasil está representado na canção
    por uma fazenda que se oferece à venda
    pela voz de um latifundiário à beira da
    falência. Ele começa por informar aos
    interessados que lá dá jerimum,/dá muito
    mamão,/pé de jacarandá. Novos atrativos
    surgem na estrofe seguinte: tem suru-
    bim,/tem isca pra anzol,/mas nem tem
    que pescar. Mais adiante, as delícias do
    lugar se multiplicam: os diamantes rolam
    no chão,/o ouro é poeira,/muita mulher
    pra passar sabão,/papoula pra cheirar.
    Melhor que isso, só o paraíso reservado
    para o final: negros quimbundos,/diversos
    açoites,/doces lundus/pra nhonhô sonhar.

     
    A enumeração dos itens ofertados se-
    gue a lógica de uma afronta crescente
    – do jerimum aos negros quimbundos,
    passando pelos diamantes que rolam no
    chão e pelas mulheres que servem para
    passar sabão, ofende-se primeiro o bom
    senso e afasta-se a seguir qualquer com-
    promisso com a dignidade humana e a
    vida civilizada. Conforme escala na di-
    reção do abominável (que também é, na
    sua perspectiva, o mais desfrutável), o
    proprietário vai se tornando mais e mais
    desesperado para vender. Ao final de
    cada estrofe, a mesma pergunta é repe-
    tida com variações – Quanto você dá?;
    Quanto quer pagar?; Quanto vai pagar?;
    Que é que você diz?; Deixe algum sinal!
    – configurando uma espécie de liquida-
    ção da própria linguagem.

     
    O que o proprietário chama de éden
    tropical e atribui à graça de Deus é, na
    verdade, um empreendimento colonial-
    escravocrata que ele tenta passar adiante
    a preço de banana no momento em que
    se torna inviável e dele não se pode ex-
    trair mais nada. Foi mais ou menos isso
    o que fez a elite brasileira quando entre-
    gou o país nas mãos de Bolsonaro. J

    PIAUI  

     

     

     

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