Descaso homicida

Por Maria Rita Kehl
ticiário. Desta vez, como vítimas
de atividades criminosas do ga-
rimpo. Todos viram as fotos de adultos
e crianças raquíticos, assolados pela fo-
me, porque a mineração ilegal matou os
peixes e envenenou os rios, elementos es-
senciais para a sua subsistência.
Quando fui convocada pela presiden-
ta Dilma Rousseff a integrar a Comissão
Nacional da Verdade, soube que a indica-
ção de meu nome provinha do MST. Por
isso escolhi investigar as violações come-
tidas contra camponeses, a exemplo dos
agricultores torturados para revelar o pa-
radeiro dos guerrilheiros do Araguaia – e
nada revelaram – ou do grande líder ma-
ranhense Manoel da Conceição, que per-
deu uma perna na tortura. Foram entre-
vistas marcantes, mas não é desses perso-
nagens que vou tratar aqui.
Acontece que a investigação sobre as
graves violações contra grupos indíge-
nas veio nesse mesmo “pacote”, talvez
por uma inadvertida leviandade de quem
aprovou a lei: indígenas e camponeses só
têm em comum o fato de viverem longe das
regiões não urbanas do País.
Nesta coluna, quero recuperar um pou-
co da história dos indígenas na ditadura
em razão da extrema atualidade do so-
frimento do povo Yanomâmi, assolado,
agora, não pela invasão de suas terras a
mando dos governos militares – as gran-
des obras de “integração” da Amazônia –,
mas pela destruição de seus meios de sub-
sistência pelo garimpo ilegal.
Segundo a estimativa de pesquisado-
res do nosso grupo de trabalho na CNV –
Inimá Simões e Vincent Carelli, além da
valiosa contribuição do Instituto Socio-
ambiental –, ao menos 8 mil indígenas
foram mortos na ditadura. “Mas como?”,
nos perguntavam. “Os índios lutaram con-
tra os militares”? Não, eles nem sequer
sabiam que viviam em um país chamado
Brasil, com um governo muito diferen-
te daquele composto por suas lideranças.
Como, então, morriam os índios cujas
terras foram invadidas na ditadura? De
causas corriqueiras. Morriam de gripe, de
sarampo, de catapora, de varíola. Viven-
do isolados, eles não dispunham das mes-
mas defesas imunológicas que os brancos.
Nesses casos, doenças banais podem ser
fatais. Os líderes das frentes de aproxima-
ção pediam ao governo para enviar remé-
dios e vacinas, mas o descaso com os po-
vos originários era completo
Um descaso semelhante, por sinal, ao
manifestado pelo ex-presidente (ufa!) Jair
Bolsonaro em relação às 600 mil vítimas
da Covid-19. Seu desprezo pelos povos ori-
ginários lembra uma antiga declaração do
ministro do Interior Rangel Reis, em 1976:
“Os índios não podem impedir a passagem
do progresso. (...) Dentro de dez a 20 anos
não haverá mais índios no Brasil”.
Na CNV, entrevistamos um sertanis-
ta chamado Antônio Cotrim, que à época
da ditadura se demitiu da Funai, um em-
prego com estabilidade garantida e bem
remunerado, para denunciar a negligên-
cia do regime à revista Veja. “Não quero
ser coveiro de índios”, justificou na oca-
sião. Acrescento, aqui, o depoimento de
Davi Yanomâmi, válido tanto em relação
às violações sofridas pelo seu povo hoje
quanto no tempo da ditadura:
Eu não sabia que existia governo.
Veio chegando de longe até a nossa ter-
ra, são pensamentos diferentes de nós.
Pensamentos de tirar mercadoria da terra:
ouro, diamantes, cassiterita, madeira,
pedras preciosas. Matam árvores, destroem
a terra mãe, como o povo indígena fala. Ela
é que cuida de nós. Ela nasceu, a natureza
grande, para a gente usar. Eu não sabia que
o governo ia fazer estradas aqui. Autoridade
não avisou antes de destruir nosso meio
ambiente, de matar nosso povo. Não só os
Yanomâmi, o povo do Brasil. A estrada é um
caminho de invasores, de garimpo, de agri-
cultores, de pescadores. Estradas que o go-
verno construiu começaram lá em Belém,
depois Amapá, Manaus, Boa Vista. Mata-
ram nossos parentes Waimiri-Atroari. É
trabalho ilegal. O branco usa palavra ilegal.
A Funai, que era pra nos proteger, não
nos ajudou nem avisou dos perigos. Hoje
estamos reclamando. Só agora está acon-
tecendo, em 2013, que vocês vieram aqui
pedir pra gente contar a história. Quero di-
zer: eu não quero mais morrer outra vez. O
governo local e nacional, deputados, sena-
dores, governadores, todos têm que pensar
como o governo vai nos proteger, e não dei-
xar mais destruir matas e rios e fazer sofrer
os Yanomâmi e outros parentes, junto com
a floresta. O meio ambiente sofre também.
Minha ideia: ando no meu país, o Brasil.
Sou filho da Amazônia, conto para quem
não sabe o sofrimento do meu povo. Não que-
remos que a autoridade deixe estragar outra
vez. Se o governo quer estrada na terra
Yanomâmi, tem que conversar com nós, jun-
to com o Ibama. O governo Dilma está apron-
tando para estragar outra vez. Nosso povo
não quer. A autoridade tem que respeitar a
Constituinte que o governo passado criou. •