Um sujeito coerente
Gabriel Trigueiro (Instagram: @gabri_eltrigueiro)
Já está mais do que claro que o conjunto de ações e omissões do governo Bolsonaro durante a pandemia foi uma tentativa sistemática e coordenada de extinguir não apenas fisicamente, mas também culturalmente os Yanomamis.
Quando lemos Genocídio: a retórica americana em questão, excelente livro de 2002 da jornalista Samantha Power, entendemos que o conceito de “genocídio” foi criado pelo linguista e jurista polonês Raphael Lemkin, para descrever o assassinato em massa, sistemático e coordenado, de armênios no império Turco-Otomano, no início do século 20, e dos judeus pelo regime nazista.
A ideia de Lemkin, e sua cruzada pessoal, era não somente criar no debate público um repertório discursivo que desse conta de descrever um fenômeno específico (morticínio coordenado em escala e proporção), mas num segundo momento codificar essa definição no ordenamento jurídico internacional e, em seguida e por fim, convencer a comunidade internacional a ratificar tratados e convenções a respeito.
Segundo a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio pela Organização das Nações Unidas (ONU), seu artigo 2º define genocídio como
qualquer um dos seguintes atos cometidos com a intenção de destruir, parcial ou totalmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como: assassinato de membros do grupo; dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo; submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial; medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; transferência forçada de menores de idade do grupo atingido para um outro.
Em 19 de outubro de 1993, o deputado Jair Bolsonaro apresentou um projeto cujo objetivo era derrubar o decreto presidencial de criação da reserva Yanomami. Em 1998, quando era deputado federal pelo PPB, argumentou que "A cavalaria brasileira foi muito incompetente. Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema em seu país". Em 2017, já candidato à presidência da República, declarou como promessa de campanha que não haveria “um centímetro demarcado para reserva indígena”.
No BBB, durante os dias de “jogo da discórdia”, a palavra “coerente” é sempre usada como elogio e “incoerente” como ofensa. O que é uma bobagem grande – há uma linha de continuidade e de coerência entre o Bolsonaro deputado e o Bolsonaro presidente. Uma vez genocida, sempre genocida.
O genocídio dos Yanomamis é, como dizem os gringos, uma cautionary tale na qual pelo menos duas lições são evidentes: 1) liberdade de expressão não é um valor absoluto, mas sempre relativo, nenhuma democracia pode se dar ao luxo de ser indulgente com discursos de ódio dirigidos a minorias – nesse caso, sobretudo, está claro o nexo de causalidade entre uma agenda política defendida continuamente ao longo de décadas e seus efeitos práticos e concretos em um segmento específico da população e 2) apenas como exercício intelectual, você consegue imaginar o que teria acontecido com os Yanomamis se Bolsonaro tivesse sido reeleito? Sim, eu e você sabemos.
CONFORME SOLICITADO