Fragmentos de textos e imagens catadas nesta tela, capturadas desta web, varridas de jornais, revistas, livros, sons, filtradas pelos olhos e ouvidos e escorrendo pelos dedos para serem derramadas sobre as teclas... e viverem eterna e instanta neamente num logradouro digital.
Desagua douro de pensa mentos.
sexta-feira, janeiro 06, 2023
A conciliação vai prevalecer?
Esther SolanoNestes dias circulou intensa- mente nas redes sociais uma imagem que redefine, em todo seu esplendor, o significado de patético. Aliás, a partir de hoje nem precisa mais definir o conceito. Sempre que for ne- cessário utilizá-lo, basta mostrá-la, fi- cará mais que evidente o que queremos expressar. A composição de fotos virou um ícone artístico-linguístico sobre a realidade do bolsonarismo mais histé- rico em toda a sua crueza: de um lado bolsonaristas delirantes na frente dos quartéis, em posição de martírio, a se oferecer em sacrifício cristão em prol da nação, patriotas na luta do Bem contra o Mal, capazes de se entregar em holo- causto pelo bem do País amado, homens e mulheres em atitude de histeria cole- tiva em defesa da bandeira brasileira, custe o que custar, colocando a vida e a honra nas mãos de Deus. Do outro lado, Eduardo Bolsonaro a curtir a Copa do Mundo no Catar, absolutamente se lixando para os abnegados patriotas. Uns na “sofrença”, o outro na farra. Uns a lutar heroicamente por um Brasil que caiu nas garras diabólicas do comunis- mo, o outro na bacanal futebolística do outro lado do planeta. Patéticos. Sim, confesso que senti prazer ao ver a imagem. Benfeito, foi o meu primeiro pensamento. Os idiotas golpistas mere- cem ser esculachados. Merecem o des- prezo até dos seus próprios líderes, ou- tros idiotas golpistas, mas um pouco mais inteligentes, ao menos suficiente- mente inteligentes para deixar outros se sacrificarem, enquanto buscam uma saída e tiram o deles da reta. A família Bolsonaro nunca esteve disposta ao sa- crifício. O sacrifício é para o baixo clero dos idiotas golpistas. Sim, senti um pra- zer inicial, mas incompleto, pois a foto me pareceu imensamente premonitó- ria. Eduardo Bolsonaro rindo, descon- traído, relaxado, parecia uma predição de um futuro no qual a família Bolsonaro talvez poderá rir, descontraída, relaxada, sem ser punida por nenhum de seus nu- merosos crimes. E isso dói, muito. O Brasil cordial de novo. O Brasil conciliador de novo. O Brasil que joga o ódio para baixo do tapete. Bolsonaro e sua famíliadevem ser julgados com todo o peso da lei. Nem mais nem menos. Devem ser julgados pe- la destruição, pelo horror, porque o hor- ror cometido tem forma e letra nos códi- gos. Não podemos deixar o ódio impune. Não podemos deixar o golpismo impune. Qual será a pedagogia do período Bolso- naro se o clã for anistiado? É possível ser golpista, é possível destruir um país, é de graça, podem fazê-lo à vontade, sintam- -se motivados para acabar com as insti- tuições, é possível odiar ostensivamen- te, façam-no, não custa nada. Não podemos escolher a conciliação quando se trata de ódio. O ódio não trata- do corretamente sempre emerge de novo e emerge empoderado, feroz. O ódio joga- do para debaixo do tapete, garras escon- didas na escuridão, latente, encoberto, na surdina, sempre estará pronto para sal- tar à luz quando houver um mínimo espa- ço, para devorar, machucar, ferir de novo. “Ah, vá, Bolsonaro nem foi tão ruim assim”, “Ele não deu um golpe, deu?”, “E se ele for julgado agora vai dividir o País de novo, vai ser guerra civil”, “Vamos cur- tir a Copa do Mundo, as férias, aí depois o Lula toma posse e a gente vira a página”, “Não vamos mexer nisso, vai ser pior”. Argumentos não faltam. O Brasil cor- dial tem uma infinidade deles. Mas todos se erguem sobre a mesma falácia: o ódio não vira a página. Sim, claro, muitas ve- zes, na vida, na política, conciliar é mui- to melhor do que ir à guerra, a negocia- ção é com certeza preferível ao campo de batalha, mas o ódio, não, com o ódio não se negocia, não se concilia, não se esque- ce, não se perdoa, não se poupa, não se esconde. O ódio não tratado não morre, continua vivo, aguardando outra opor- tunidade, espalhando a sua purulên- cia, corroendo qualquer possibilidade de uma sociedade saudável que olha pa- ra o futuro coletivamente. Sem comba- ter o ódio não há “nós”. A história brasileira da conciliação é um desastre. A conciliação dos escravo- cratas teve como herança um dos países mais racistas do mundo. A conciliação da ditadura teve como herança Forças Ar- madas despudoradamente antidemocrá- ticas. O Brasil cordial vai se impor de no- vo? O Brasil cordial vai tentar esquecer um dos períodos mais vergonhosos de sua história recente? Que a lei se imponha. Odiar um país, tentar destruí-lo, não pode sair de graça. O ódio não vira a página.CARTA CAPITAL