O futebol prevalece sobre as ruinas morais da FIFA
Milly Lacombe
Termina a Copa do Mundo da ditadura do Qatar. O futebol, soberano, prevalece sobre as ruínas morais da FIFA, do absolutismo monárquico dos anfitriões, da censura a manifestações políticas, da ausência de mulheres e de pessoas LGBTQs.
Essa foi a Copa de Messi e, aos mais crédulos, ficará a certeza de que existe um Deus que foi incapaz de deixar um dos três maiores da história se aposentar sem a taça.
Nada contra o escrete francês - au contraire - mas tudo a favor desse gênio que eleva o futebol ao estado de arte e abre espaço para que o sagrado entre em campo.
Em tempos de protocolos tediosos, de DJs nos estádios, do controle sobre como devemos torcer aparece a torcida argentina para dizer "pera lá que não é bem assim". Rompendo com o padrão de comportamento dos corpos domesticados nas arquibancadas, nossos vizinhos mostram como se faz.
Enquanto no Qatar eles convidam a gente a lembrar do que é torcer, na Argentina uma improvável história se apresenta como central: a da avó que vai às ruas com sua bandeirinha e faz circular afetos novos.
O título foi de Messi e das avós argentinas. Que imensa a narrativa a que essa Copa está criando.
Sobre o Qatar, pouco ficamos sabendo.
Numa ditadura permite-se noticiar o que convém ao Emir.
Não se falou sobre a falta de direitos humanos, não vimos as cidades periféricas construídas por e para que os trabalhadores imigrantes não se misturem aos locais, nada se ruim foi noticiado sobre a família que comanda a ditadura.
Mas pudemos notar coisas que talvez estivessem escondidas sobre nós mesmos.
Ronaldo é oficialmente um magnata da bola, com tudo o que isso tem de ruim.
Os campeões do penta, convidados da FIFA e/ou do Emir para assistir aos jogos, se revelaram pessoas apequenadas de caráter e nos obrigam a fazer o ingrato exercício de separar o ídolo da pessoa.
Nossa seleção, como previsto pelos mais atentos, não teve uma liderança madura e, sem jogar nada de bola, foi eliminada muito antes do que gostaria a maioria.
A galera brasileira presente à Copa foi basicamente composta por uma start-up de torcida que desconhece o que seja apoiar autentica e apaixonadamente uma camisa, protagonizando um espetáculo tão miserável quanto deprimente.
Percebemos claramente o que separa celebridade de herói, estando nosso camisa 10 no primeiro grupo e Messi no segundo.
Pela primeira vez, tivemos que juntar a melancolia do final de ano com a melancolia do final da Copa, um sentimento que normalmente a gente tinha seis meses para elaborar mas que esse ano, para acomodar as temperaturas menos cruéis do Qatar, não foi possível.
Por outro lado foi interessante levar a Copa a um país árabe e ver as populações árabes se sentindo em casa. A torcida do Marrocos e o time inteiro do Marrocos inauguraram emoções e sentimentos em todos e em todas nós.
No Qatar, o esporte nacional é sair para o deserto e soltar falcões. Os pássaros são treinados por especialistas e pertencem aos mais ricos. É sinal de status ter falcões e fazê-los performar nos céus do deserto. Há centenas de veterinários que são levados ao Qatar para cuidar dos Falcões: é um negócio das arábias por lá.
Ao final da Copa, o país esquecerá o futebol e voltará a atenção exclusiva aos falcões. Isso, claro, falando dos locais.
A enorme população imigrante, mais de duas milhões de pessoas e quase a totalidade desse número composta por trabalhadores vindos de países vizinhos, gosta mesmo é de cricket.
O futebol e seus estádios suntuosos ficarão pelo deserto em busca de algum significado.
Como alguns dos elefantes brancos erguidos para a Copa do Brasil em 2014.
A FIFA faz uma magnífica fagocitose nos países que sediam o torneio.
Chega anos antes, cria embargos e leis, coloca exigências à mesa, lucra em parceria com uma pequena parcela de empresários e políticos com os quais se associa, e vaza deixando um rastro de ruínas e de espaços vazios.
Não houve de fato nenhuma grande transformação no futebol brasileiro depois de 2014 a não ser o aprofundamento da elitização. Para a população em geral, nada restou.
Não saberemos o que será do Qatar porque a monarquia absolutista não vai permitir que saibamos.
Mas o que ficará, especialmente em caso de vitória da Argentina, é o gosto doce da justiça poética.
O futebol, no final, segue vencendo. Mas até quando?
UOL