A democracia na encruzilhada
A EXTREMADIREITA CRESCE NO VÁCUO DA
INCAPACIDADE DOS LIBERAIS E DOS PARTIDOS
DE CENTROESQUERDA DE RESOLVER
PROBLEMAS BÁSICOS DAS SOCIEDADES
p o r A L D O F O R N A Z I E RI
2 2 C A R T A C A P I T A L . C O M . B R
Todas as eleições presidenciais são históricas. No entanto, as deste ano
agregam uma singularidade a mais pelas circunstân-
cias em que ocorrem. Os anos recentes
são marcados por ameaças às democra-
cias em vários países. O Brasil não fugiu
disso: o governo Bolsonaro representa a
mais grave ameaça ao Estado Democrá-
tico no período pós-ditadura.
Circula a tese de que governos de ex-
trema-direita que governam países de-
mocráticos não se reelegem. Foi o caso
de Donald Trump nos EUA e será o caso
de Jair Bolsonaro no Brasil. Mas há ex-
ceções: Viktor Orbán, na Hungria, está
em seu quarto mandato. A Europa está
coalhada pela ascensão de partidos de
extrema-direita. A Itália deverá ser go-
vernada por uma coalizão de inspiração
fascista, liderada por Giorgia Meloni. Na
Suécia, o partido extremista Democratas
Suecos tornou-se o segundo maior e inte-
gra um governo de direita. A extrema-di-
reita consolida-se ainda na França, Ale-
manha, Áustria, Espanha, Polônia, Bul-
gária e República Tcheca.
Os destinos da extrema-direita no Bra-
sil dependem, em boa medida, do resulta-
do das eleições: se Bolsonaro for derrotado
no primeiro turno e eleger uma bancada
pequena de deputados e senadores, ela te-
rá dificuldade de operar na oposição. Con-
sidere-se que o Centrão não se subordina-
rá à liderança de Bolsonaro. Nessas condi-
ções, para ter autonomia, a extrema-direi-
ta teria de formar um partido próprio ou
hegemonizar um dos partidos existentes.
A extrema-direita cresce no vácuo da
incapacidade dos liberais e dos partidos
de centro-esquerda de resolver proble-
mas básicos das sociedades: desempre-
go, estagnação da renda, pobreza e de-
sigualdade, saúde, educação, habitação,
imigração, inflação, preços da energia e
dos alimentos e crise ambiental. É certo
que esses problemas foram agravados pe-
la pandemia e pela guerra, mas existiam
antes das mesmas.
Os partidos liberais e de centro-es-
querda, no poder, costumam se insular
em relação às sociedades, constituem eli-
tes que se servem dos privilégios públi-
cos e da corrupção e só recorrem ao povo
na hora do voto. Seu maior esforço con-
siste em promover políticas compensa-
tórias que criam uma falsa sensação de
distributivismo que disfarça os sistemas
tributários regressivos.
Esses partidos não conseguem reter a
lealdade eleitoral das massas e os partidos
de centro-esquerda perdem até mesmo a
lealdade dos trabalhadores, que se deslo-
cam para as legendas de extrema-direi-
ta. Com discursos nacionalistas e mora-
listas, com a defesa de valores conserva-
dores e apelos a Deus e à religião, essas si-
glas se revestem de roupagem antissiste-
ma e prometem soluções heterodoxas que
combinam ações de Estado, políticas po-
pulistas e liberdade de mercado.
A extrema-direita, com fórmulas sim-
ples e vazias de conteúdo, procura via-
bilizar-se por uma estratégia fideísta
agregando fidelidades pelo moralismo e
o conservadorismo. Essas agremiações
estão ainda numa fase inicial de forma-
ção e de amadurecimento ideológico. O
seu agrupamento mais desenvolvido e
coeso parece aninhar-se no Partido Re-
publicano dos Estados Unidos.
Tudo indica que a estratégia fideísta vi-
sa preparar contingentes para uma futura
“guerra santa”, com o objetivo de assaltar o
poder e estabelecer regimes autoritários.
Esse é o desdobramento natural e previsí-
vel das estratégias fideístas. Os grupos re-
ligiosos extremados – evangélicos, católi-
cos e judeus ortodoxos – constituem con-
tingentes, por excelência, mobilizáveis por
essa extrema-direita neonazista.
Orisco potencial de regi-
mes autoritários e tota-
litários sempre será uma
ameaça latente nas zonas
sombrias da alma huma-
na. A ideia iluminista da infinita per-
fectibilidade da humanidade revelou-se
uma falácia. Assim, precisamos dar razão
a Kant: “Não é do interior da moralidade
que surge a boa Constituição do Estado.
É da boa Constituição que se pode espe-
rar a boa formação moral de um povo”.
Não basta Lula vencer as eleições e o
bolsonarismo colher uma dura derrota.
Da mesma forma, não basta reconstituir
as instituições e as premissas democrá-
ticas arruinadas por Bolsonaro. Não é
suficiente, ainda, implementar políti-
cas compensatórias de mitigação da po-
breza e da desigualdade e de recuperação
do emprego e da renda para dignificar os
brasileiros mais pobres. Será necessário
realizar reformas estruturantes, que eli-
minem os mecanismos que produzem a
desigualdade e a concentração de renda
numa perspectiva de longo prazo.
Existem duas tarefas ainda mais di-
fíceis. A primeira consiste em favore-
cer a organização e a participação polí-
tica do povo como forma efetiva de con-
quista e garantia de direitos. A segun-
da, imbricada com a primeira, consiste
em criar afetos, fidelidades, uma adesão
espiritual a um projeto de país, de na-
ção e de humanidade. As formas vazias
da república e da democracia precisam
ser superadas pelo calor comunitário da
participação e da mobilização, orienta-
das por valores universalistas da cons-
trução de um destino comum para a hu-
manidade em nosso planeta. •
CARTA CAPITAL