Sob a égide do medo
Medo e esperança, assim como força e consenso, constituem um dos pares antinômicos mais consagrados da atividade política e do exercício do poder.
Medo e esperança, por sinal, são dois meios
excepcionais de interação humana que
visam constituir e exercer ralações de
poder. O grande líder político é aquele
que sabe usar com maestria e com arte
os múltiplos pares antinômicos ineren-
tes ao jogo político e ao jogo do poder. O
líder astucioso é aquele que gera medo
intencionalmente e, ao mesmo tempo,
o supera com as promessas de solução
e com a esperança de uma vida melhor.
No caso do governante, com medidas
práticas e soluções para os problemas.
Alguns analistas chamaram atenção
para o fato de que as eleições de 2022 são
marcadas pelo medo. O medo está pre-
sente em todas as eleições como meio
de disputa e, a rigor, na atividade políti-
ca em geral. O problema das eleições de
2022 é que o jogo do par antinômico pra-
ticamente não existe. Tornou-se um jogo
unilateral de um predomínio quase abso-
luto do medo. A esperança, nos seus pá-
lidos aparecimentos, vem recoberta pe-
la capa do medo. O medo predomina nos
dois polos principais da disputa: as cam-
panhas de Bolsonaro e de Lula.
Bolsonaro tem um evidente e qua-
se paranoico medo de perder. Teme en-
frentar não só as consequências políti-
cas, mas também jurídicas da derrota.
Esse medo o faz propagar medo: medo do
comunismo, da esquerda, da destruição
da religião e da família, de Deus, da pá-
tria etc. Gera um medo que produz ódio,
que chega ao limiar da violência.
A estratégia de Bolsonaro consiste
mais em identificar e atacar inimigos do
que apresentar propostas para a solução
de problemas sociais e um programa pa-
ra governar o Brasil. Com esse foco, não
tem como gerar esperança orientada pa-
ra o futuro. A esperança que ele gera é a
de evitar o “mal” e, se o “mal” tem a fa-
ce do inimigo, então a esperança bolso-
narista vem armada com a bandeira da
mentira e com a gadanha da morte.
Toda a sorte de degradações civiliza-
tórias que Bolsonaro praticou em seu go-
verno – insensibilidade com a dor dos vi-
vos, deboche dos mortos, machismo, mi-
soginia, racismo, preconceitos, autorita-
rismo, loas às armas, à violência e à tor-
tura, promessas de golpe – são máscaras
amedrontadoras que não conseguem es-
conder a vontade de morte. A expressão
“todos nós vamos morrer um dia”, dos
trágicos momentos agudos da pande-
mia, revela esta pulsão terrível de morte
que povoa a alma de Bolsonaro, com o seu
olhar desértico de emoções empáticas.
Os eleitores e ativistas democratas
e progressistas de esquerda que se ar-
ticulam em torno da campanha de Lu-
la (e das demais candidaturas) também
estão sob a égide do medo: medo da con-
tinuidade de um presidente extremista,
medo do fascismo, do golpe e do fim da
democracia, medo da continuidade da
tragédia social e medo do segundo turno.
O conteúdo geral das três principais
campanhas opositoras é mais reconstru-
tivo do que propositor de um novo mo-
mento para o Brasil. O conteúdo geral da
campanha de Lula volta-se mais para o
que já foi feito, para um passado que deu
certo, do que para a inovação de um no-
vo futuro. A cautela domina a ousadia. A
tensão domina a empolgação. O medo re-
cobre a esperança. É como se a violência
estivesse emboscada à espera de uma fa-
gulha, de um estampido.
Vivemos em tempos nos quais as
campanhas eleitorais perderam a ale-
gria da celebração democrática. Os elei-
tores permanecem aquartelados na ris-
pidez fria das redes sociais. Em parte,
isto se deve ao fato de que, já há alguns
anos, os progressistas e as esquerdas
perderam as ruas. A antessala da cam-
panha eleitoral foi marcada pela des-
mobilização. A apatia política, agrava-
da pela pandemia, aprofundou o isola-
mento social e disseminou o medo no
ativismo e na militância, enquanto os
líderes se esmeravam nas lives no con-
forto de seus lares.
Assim, o engajamento primaveril do
colorido das bandeiras empalideceu. As
campanhas são tocadas por pequenos
exércitos de marqueteiros e de burocra-
tas dos partidos que mais cingem a criati-
vidade dos candidatos e o alarido da mili-
tância do que permitem ondas anímicas
de encantamentos que promovem os mo-
vimentos decisórios dos votos dos eleito-
res. As propostas se reduziram quase só
a referências às bocas e aos bolsos. A po-
lítica perdeu o encanto, já que perdeu o
espírito e a imaginação, os fomentos da
liberdade e da criatividade
CARTA CAPITAL