- Na má hora de Bolsonaro
Janio de Freitas
1 — O período entre a eleição e a posse está propenso a ser alarmante, mas não por desatinos militarescos. Três meses a mais da matança já em curso de chefes indígenas, invasão das terras de reserva, maior desmatamento, novos e urgentes garimpos ilegais —um ataque desvairado da criminalidade em tempo de aproveitar a licenciosidade que Bolsonaro lhe proporciona, por sua própria criminalidade. A ofensiva apressada pelo medo da derrota eleitoral.
É o que está havendo em grande parte do Brasil, não só na Amazônia. E sem providência alguma nos muitos braços do governo destinados a esses problemas. Onde consta haver ou ter havido algum olhar da Polícia Federal, sempre por apelos desesperados, nada de resultante se registra contra a ilegalidade armada e endinheirada. Nas informações imprecisas, as mortes de chefes indígenas já estão entre sete e dez.
A única maneira de talvez conseguir-se algumas providências é maior atenção da imprensa para as situações agudas, ao menos essas. Não seria generosidade. É um dever historicamente muito mal cumprido pela imprensa. Como se não compreendesse que relegar a dimensão humana e moral do extermínio de indígenas e da exploração ilegal de riquezas públicas é, no mínimo, também conivência com essa criminalidade.
2 — Mostrou-se com clareza uma particularidade de Bolsonaro até agora pouco observada: a ingratidão. Seu insulto a uma jornalista rivalizou, em espaço de imprensa e tempo de TV, com nada menos do que a eleição para a Presidência do país. Embora não fosse comparável aos insultos dirigidos às jornalistas Patrícia Campos Mello, Míriam Leitão, Elvira Lobato e outras, teve a particularidade de tomar o lugar do que devia ser um agradecimento de Bolsonaro.
De sua parte, Vera Magalhães poderia mesmo surpreender-se. Até a recente transferência para O Globo, sua atividade no Twitter, na Jovem Pan, em artigos foi integrante da incitação ao clima furioso que favoreceu Bolsonaro. Um exemplo poderia bastar: no extenso rol de agressões verbais recebidas pela Folha, talvez nenhuma seja tão brutal quanto a de Vera Magalhães, apenas pelo convite a Guilherme Boulos para uma colaboração temporária —em conformidade com o pluralismo único da Folha.
Nestes dias, as redes estão repletas de mensagens inesquecíveis da jornalista, com predileção por suas frases na morte de Marisa Lula da Silva. O que explica o insulto de Bolsonaro, e ainda a pergunta boba do deputado que o repetiu, parece ser menos a condição feminina aviltada pelo bolsonarismo do que a perda de uma jornalista útil, de repente moderada no novo emprego. Bolsonaro foi até explícito no ataque à jornalista ("você envergonha o jornalismo"), não à pessoa.
Nem Bolsonaro ataca só mulheres, com tantas agressões verbais a repórteres masculinos no cercadinho do Alvorada, por exemplo, e fora dele. Bolsonaro e seus apoiadores são crias do fascismo, com tempero miliciano e militar. Nesse extremismo, quem não está ou não está mais com eles é inimigo, na acepção mais totalizante da palavra.
3 — Ciro Gomes já provou sua atual falta de condições para avaliar o papel que representa nesta disputa pela Presidência. Aderiu a métodos de Bolsonaro, sem aderir ao próprio. Age como se pretendesse apenas fazer um estrago daqueles. Não é, com toda a certeza, uma das possibilidades que sua vida política lhe abriu.
Nenhuma pessoa intelectualmente honesta equipara Lula e Bolsonaro. Se quiser, detesta Lula como político e como ser humano, mas reconhece que nele não há sequer resquício da perversidade, da atração pela morte alheia, da busca de ligação com o pior da sociedade que são, entre tantas perversões, intrínsecos na natureza de Bolsonaro.
Como prejudicado, é legítimo que Ciro defenda-se do voto útil. Não, porém, por meio de conceituações mentirosas, até porque dele já se valeu. O voto útil é uma escolha tal como foi a preferência anterior, mas muito mais forte em seu civismo: o eleitor desiste da sua escolha mais pessoal para apoiar o que lhe parece mais conveniente nas circunstâncias postas.
A campanha de Ciro Gomes parece elaborada, em sua fúria no molde bolsonarista, para demonstrar que o candidato perdeu as condições psicológicas e cívicas esperadas de um presidente. Uma forma de sugerir o voto útil.FOLHA
Democracia Política e novo Reformismo: Janio de Freitas - Na má hora de Bolsonaro