Bandidos mortos, bandidos vivos
A máxima "bandido bom é bandido morto" surgiu na conversa pública brasileira em 1986, logo após o fim da ditadura militar. Era o slogan da campanha à Assembleia Legislativa fluminense do delegado José Guilherme Godinho Ferreira, o Sivuca.
A princípio não deu certo. Embora fosse uma estrela no submundo policial carioca e um dos principais nomes da Scuderie Detetive Le Cocq, mais conhecida como Esquadrão da Morte, Sivuca passou longe de se eleger. A mensagem não estava madura.
Dois anos depois, ele moderou sua ambição e concorreu à Câmara Municipal do Rio. O mesmo slogan, o mesmo fiasco: com 6.057 votos, classificou-se apenas como quinto suplente do PFL na casa.
Mesmo derrotado, porém, Sivuca viu as coisas começarem a mudar. Seu lema ganhava circulação na sociedade, adotado pelo baixo jornalismo sensacionalista (Ratinho foi um dos primeiros a pular a bordo), por motoristas de táxi e tiozões de churrasco.
Outro sinal de virada: na mesma campanha de 1988, entrava na Câmara carioca um capitão do Exército recém-reformado após um nebuloso julgamento por suspeita de ato terrorista —um certo Jair Bolsonaro.
Quando, dois anos depois, Jair saltou da Câmara Municipal para a Federal, Sivuca conquistou finalmente um mandato de deputado estadual, que renovaria em 1994. "Bandido bom é bandido morto", a mensagem, começava sua trajetória vitoriosa.
Não se pode atribuir ao delegado a autoria propriamente dita da máxima. Tudo indica que se trata de uma criação coletiva, provérbio germinado num pântano moral carioca em que chapinhava bastante gente.
De todo modo, foi ele quem colou a frase na testa como policial e político. Morreu em agosto do ano passado, numa pacífica cama, de Covid, aos 90 anos, e seu legado está mais vivo do que nunca.
Quando bate palmas para a chacina da Vila Cruzeiro e tergiversa sobre o assassinato de Genivaldo de Jesus Santos por policiais rodoviários, lamentando que a mídia "sempre tem lado, o lado da bandidagem", o presidente da República se confirma fiel à sua origem no mesmo brejo moral de onde saiu a frase —uma origem da qual sempre se orgulhou.
Ao glorificar a execução extrajudicial —ou seja, bandidagem— de bandidos, a máxima do Esquadrão da Morte é atravessada por uma contradição insolúvel. Isso não a impede de contar com forte apoio popular numa sociedade em que a segurança pública é uma ferida aberta e infeccionada.
Seu sucesso tem raízes históricas profundas. Desde o Império, as classes dirigentes do país sempre mobilizaram as forças de segurança contra o povo com grande ferocidade, tentando controlar a violência que, mais do que previsível, é inevitável quando se cultiva uma desigualdade social tão obscena quanto a nossa.
É por isso que, para a turma do "bandido bom é bandido morto", nem importa saber quantos dos chacinados na Vila Cruzeiro eram mesmo bandidos ou que Genivaldo, definitivamente, não o era. Eram pretos, pardos, pobres? Basta. Sempre bastou.
Quando caíram os últimos defensores do arraial de Canudos, "um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5.000 soldados" (Euclides da Cunha, "Os Sertões"), já pairava no ar, latente, o slogan de Sivuca.
Essa competente peça de comunicação expressa uma doença brasileira ancestral e só deixará de eleger oportunistas de extrema direita no dia em que nosso apartheid for coisa do passado. Um dia que não se vê no horizonte.
FOLHA
foto> Armas apreendidas em operação na Vila Cruzeiro, no Rio -