Que as coisas se deteriorem e acabem faz parte da possibilidade de que algo novo advenha, num jogo no qual se encontra a própria força criativa. Mas a resignação diante do horror acontece quando temos a desfusão das pulsões, ou seja, a perda da relação intrínseca entre pulsão de morte e de vida.
Se nos fazemos de impotentes, negamos nossa responsabilidade pelos acontecimentos, justificando que o mundo é grande demais para que possamos fazer frente a ele. Mas vale lembrar que gestos individuais não se dão no vácuo e cada fala que emitimos opõe ou valida a anterior.
O texto de Reinaldo José Lopes nesse jornal é um primor de concisão e relata os efeitos mensuráveis que os discursos de ódio têm sobre os atos de violência e arbitrariedade com os quais convivemos. O discurso autoriza atos, incentiva comportamentos e compartilha responsabilidades, para o bem e para o mal.
Em 2021, Jillian Peterson, professora associada de criminologia, e James Densley, professor de Justiça criminal lançaram o livro "The Violence Project: How to Stop a Mass Shooting Epidemic" ("O Projeto Violência: Como Parar uma Epidemia de Tiroteios em Massa"), considerado o estudo mais profundo sobre o tema. Entre as questões levantadas pelos autores, temos a urgência no controle de armas e a identificação de doenças psíquicas não tratadas, uma vez que os assassinatos também são atos suicidas, pois incluem a expectativa de morte do próprio atirador.
A América do Norte tem servido de modelo para uma parte dos brasileiros que acredita que os EUA encerram o exemplo de civilidade a ser seguido. No entanto, o discurso armamentista, a ideia de supremacia branca, o consumo irresponsável que exaure a vida, o dinheiro como única medida de reconhecimento social e a celebridade a qualquer preço têm relação direta com massacres.
No Brasil, temos o veto do presidente ao nome de Nise da Silveira para o panteão dos heróis nacionais, num discurso claro contra o tratamento humano aos doentes mentais. Seu efeito em ato foi documentado no assassinato brutal de um jovem esquizofrênico pela polícia Rodoviária Federal do Sergipe. A retórica de que a arma defenderia o cidadão se junta ao fato de que o Brasil tem o mais baixo nível de confiança entre as pessoas 4,69% (a média mundial é 25% e, em alguns países da OCDE, é 45%) engrossando o caldo no qual chafurdamos.
Na conjunção entre discursos que promovem a violência contra os sujeitos sem "foro privilegiado" (político, racial, de gênero ou classe), liberação das armas e descaso com a saúde mental temos o caldo para os massacres que assistimos diuturnamente.
Nem a riqueza, nem a educação norte-americanas são suficientes para impedir a progressão dessas tragédias, porque, como explicam Peterson e Densley, as ações necessárias para impedi-las esbarram em polarização política e interesses econômicos.
Não há mais espaço para subestimar os efeitos dos discursos e desresponsabilizar quem faz, quem incentiva e quem se omite diante do descalabro.
FOLHA