O BOM SAMARITANO

Há 37 anos, o sacerdote mantém a mesma rotina. “Hoje eu encontrei Jesus“, costuma escrever, ao publicar a foto de um irmão na rua - Imagem: Renato Luiz Ferreira
EM MEIO A UMA CRISE HUMANITÁRIA
SEM PRECEDENTES, O PADRE
JÚLIO LANCELLOTTI SIMBOLIZA
A ESPERANÇA EM DIAS MELHORES
""É para partilhar co-
mo irmão, não
igual patrão. Não
quero ver nin-
guém pegar mais
do que precisa e
deixar o outro sem
agasalho no frio”, orienta o padre Júlio
Lancellotti, momentos antes de distri-
buir as roupas doadas à Paróquia de São
Miguel Arcanjo, na Mooca, Zona Leste
de São Paulo, às duas dezenas de sem-te-
to que haviam acabado de participar de
uma roda de conversa com ele e um céle-
bre visitante, o rapper Emicida.
Na manhã da segunda-feira 23, as
temperaturas na capital não estavam
tão baixas quanto na semana anterior,
quando o sacerdote de 73 anos salvou
dois homens da hipotermia, mas presen-
ciou a morte de um terceiro na fila do ca-
fé da manhã no Núcleo de Convivência
São Martinho. Na madrugada da quar-
ta-feira 18, durante uma ronda na re-
gião da Luz, o religioso não precisou ca-
minhar mais que 3 quilômetros para en-
contrar um homem com o corpo enrije-
cido e os lábios arroxeados na calçada da
Rua Prates. Chamou uma ambulância e
prestou os primeiros socorros. A inter-
venção não alterou a rotina na manhã se-
guinte. Como faz todos os dias, acordou
antes de o sol se firmar, celebrou a mis-
sa das 7 e empurrou seu carrinho de su-
permercado, repleto de pães e donativos,
pelas ruas do bairro até o centro comu-
nitário, a poucos quarteirões da igreja.
Surpreendido com a notícia da morte de
Isaías de Faria, de 66 anos, que sofreu uma
convulsão na fila de espera pela primeira
refeição do dia, o padre mal teve tempo de
digerir o luto. Precisou socorrer outro ir-
mão das ruas com hipotermia. “Cansa de
falar, cansa. Porque, se aqui está assim
você imagina por aí, como tudo está”, de-
sabafou, com voz trêmula e olhos mareja-
dos, pouco depois de aquecê-lo com uma
manta térmica. Todos os anos, a tragédia é
reencenada, só mudam os nomes dos ato-
res, mas a cidade vive uma crise humani-
tária sem precedentes, avalia o padre. Em
apenas dois anos, a população em situação
de rua cresceu 31% em São Paulo, segun-
do o último censo da prefeitura. Quase 32
mil cidadãos dormem em abrigos manti-
dos pelo Poder Público ou debaixo das
marquises e viadutos."
LEIA REPORTAGEM DE RODRIGO MARTINS