'Não quero colocar um filho negro nesse mundo'
Protesto pela justiça de Kathlen Romeu, 24, vítima de uma bala perdida em uma operação policial no Rio de Janeiro -
Victoria DamascenoEu, na verdade, quero. Mas nos últimos anos cansei de ver mulheres negras dizendo que não podem se dar o luxo de colocar um filho negro nesse mundo, principalmente no Brasil. São amigas, familiares e até desconhecidas.
Desistem devido ao racismo, que se reproduz na violência policial e em muitos outros tipos de agressões. Em última instância, se apresenta como o medo de ter que enterrar um filho, invertendo a ordem natural da vida.
Sua decisão tem fundamento. Em 2019, pretos e pardos foram 77% das vítimas de homicídio no país, segundo o Atlas da Violência de 2021. O estudo também mostra que temos mais do que o dobro de chances de sermos assassinados do que pessoas não negras. Em Salvador, negros eram 100% dos mortos pela polícia em 2020, segundo a Rede de Observatórios da Segurança.
Quando a violência não se esgota na morte, mata em vida. Se materializa no medo do parto, uma vez que nós, mulheres negras, somos mais suscetíveis a sofrer violência obstétrica. Aparece também na angústia de que nossos rebentos enfrentem o racismo antes que saibam se defender. E que, quando se defendam, sejam vítimas da violência.
Há no imaginário coletivo a ideia de que a mulher negra é forte, batalhadora, supera qualquer obstáculo. Como se aguentássemos mais do que as brancas, enquanto essas devem ser protegidas. Este estereótipo, construído historicamente, desumaniza-nos.
Não é razoável uma mulher abandonar o sonho de ter filhos por medo de que eles sejam mortos.
Ainda assim, é preciso ter fé. Esperança de que aqueles vindos dos
nossos ventres ocuparão espaços que, com suas decisões, quebrarão este
ciclo vicioso. Mas enquanto a solução não se apresentar como uma
política de Estado, deixem as mulheres negras –e as suas escolhas– em
paz.
FOLHA