O que o próximo governo fará com os militares aboletados em cargos civis?
Ricardo Kotscho
Além de desreformar as reformas trabalhista e previdenciária, desfazer privatizações açodadas e o teto de gastos para a área social, retomar o controle da Petrobras e reconstruir as políticas públicas, o próximo governo terá um outro desafio de bom tamanho: o que fazer com os mais de 6 mil militares aboletados em cargos civis da administração federal, do Palácio do Planalto à Funai, segundo o último levantamento do Tribunal de Contas da União?
O TCU identificou no começo do ano passado 6.157 militares da ativa e da reserva em todos os escalões do serviço público federal no governo do presidente Jair Bolsonaro, mais do que o dobro do que havia em 2018, no governo Michel Temer (2.765).
Na verdade, hoje ninguém sabe quantos são os fardados anfíbios que dobraram seus soldos com uma boquinha no governo Bolsonaro, que militarizou até o Ministério da Saúde, quando o general da ativa Eduardo Pazuello levou a sua tropa para enfrentar a pandemia do coronavírus, que já deixou quase 620 mil mortos.
Nenhum governo pós-redemocratização desmoralizou tanto as Forças Armadas como a dupla Bolsonaro & Pazuello.
"O que acontecerá com as Forças Armadas com o fim do governo Bolsonaro?", pergunta o premiado repórter gaúcho Carlos Wagner em seu blog "Histórias Mal Contadas", em que mostra como os militares comandados pelo general Villas Bôas pegaram uma carona na candidatura Bolsonaro em 2018 para voltar ao poder, agora pelo voto.
O objetivo declarado deles era evitar que o Brasil virasse uma Venezuela, se o PT voltasse ao poder, mas na prática repetiram a trajetória do bolivariano Hugo Chavez para comprar o apoio das Forças Armadas ao projeto de golpear as instituições democráticas e se eternizar no poder.
A primeira tentativa, no putsch de 7 de setembro, não deu certo, mas as últimas movimentações de Bolsonaro e seus generais indicam que eles não desistiram da empreitada.
Com escassas possibilidades de ficar no cargo pelo voto, derretendo em todas as pesquisas, o capitão reformado resolveu partir para uma anticampanha, fazendo de tudo para não ganhar as eleições, como escrevi aqui outro dia. E aí está o perigo.
De que outra forma se pode explicar o novo aumento que quer conceder às forças de segurança, em detrimento dos outros setores do serviço público, que já estão se mobilizando para greves e protestos? Como entender a farra das suas férias na praia enquanto o país sofria com as enchentes que deixaram milhares de desabrigados? E agora esta campanha insana movida contra a vacinação infantil?
Quem quer recuperar a popularidade perdida não se daria ao desfrute de sair do hospital em São Paulo, onde estava quase morrendo, como disse ao seu médico, para ir no mesmo dia prestigiar uma pelada promovida por cantores sertanejos no interior de Goiás.
Está cada vez mais claro que Bolsonaro desistiu de governar o país para jogar tudo na provocação do caos generalizado, uma grande convulsão social, com o objetivo de convocar as Forças Armadas para restabelecer a ordem.
Sem inimigos externos nem internos à vista, o ex-capitão defenestrado do Exército aos 33 anos sonha em mobilizar as tropas militares e policiais para uma guerra civil imaginária, em que ele apareça como salvador da pátria aos olhos dos seus fanáticos seguidores.
Pode parecer tudo uma grande loucura, e é. Mas não dá mais para analisar os passos errantes de Bolsonaro como se ele fosse uma pessoa normal.
Os militares que o apoiaram na campanha e aderiram alegremente ao seu governo, em troca de verbas, penduricalhos e benefícios variados, enganaram-se quando pensaram que, uma vez no poder, poderiam controlá-lo.
"Todos que se metiam no seu caminho eram demitidos ou afastados. E o caminho dele era claro: preparava um golpe militar para ficar no poder", escreve Carlos Wagner, que sugere enviar os militares para combater o crime organizado nas nossas fronteiras e na Amazônia, a real ameaça à soberania nacional. "Há muito tempo a guerra convencional acabou. Outro tipo de guerra surgiu. E nesse novo tipo de guerra há uma arma muito poderosa: o dinheiro ilegal ganho com as drogas, o tráfico de armas e pessoas e outros crimes. Hoje parte desse dinheiro sujo está financiando o avanço dos garimpeiros nas áreas indígenas da selva amazônica".
Quem assumir o governo no pós-Bolsonaro terá que ter a coragem de propor ao Congresso e à sociedade uma rediscussão sobre o papel das Forças Armadas. Nossa democracia não pode continuar correndo o risco de novos golpes.
Vida que recomeça.
uol