Perdão, Kathlen
Não entendo que o Rio inteiro não se insurja contra esse crime bárbaro. Não aceito que os protestos se circunscrevam à favela e seu entorno carente. Está errado. Nossa pele branca não pode ser álibi para nos resignarmos em casa, como se o massacre de negros e pobres não acontecesse em nossa esquina. O lugar de fala não pode nos servir, a nós, brancos, como permissão tácita para o silêncio. Fingir que o Brasil não é racista e violento é ser cúmplice da desigualdade.
A PM não pode continuar a violar a determinação do Supremo de evitar operações policiais nas favelas durante a pandemia. “Só casos absolutamente excepcionais”, disse o ministro Edson Fachin. E a lei não pega e fica por isso mesmo. Foram 29 mortos no Jacarezinho. Agora, Kathlen e seu bebê.
Todo mundo continua a dormir bem? Para sobreviver a essa insanidade e aplacar nossa culpa, muitos se alienam e outros promovem vaquinhas nas redes sociais para ajudar a família no enterro. Escrevo uma coluna hoje. E só? Nos últimos quatro anos, 15 grávidas foram baleadas no Grande Rio, oito morreram, quatro em ações policiais.
Não foi fatalidade, não foi tragédia e me recuso a falar em “bala perdida”, por ser mais uma bala anunciada, numa ação policial ilegítima. Nossa política de segurança é de morte. A mãe de Kathlen, Jackeline, denunciou: “Eles falaram que a minha filha ganhou um tiro. Ela não ganhou um tiro. Foi executada. A PM deu tiros inconsequentemente e executou a minha filha. Todos os moradores falam que não havia troca de tiros. Eles (os policiais) estavam dentro de uma casa, viram os bandidos e atiraram. Não olharam para a rua para ver se alguém estava passando. Na favela, não mora só bandido. Bandido é que dá tiro a esmo. Polícia não. Polícia treina. A PM tirou a minha vida. O meu sonho. Parem de matar gente”.
Kathlen saiu da favela onde nasceu quando soube da gravidez. Já tinha desenhado um destino luminoso, compraria uma casa com o companheiro, seria mãe. O pai, Luciano Gonçalves, disse que ela vivia a melhor fase da vida. Cheia de sonhos, inteligente, sonhava ser blogueira, modelo. “A gravidez no começo foi um susto. Ninguém esperava, mas foi uma bênção de Deus a gravidez da minha filha. Ela estava apreensiva, mas feliz”. Voltou ao Lins para visitar a avó, Sayonara. Ao lado dela, morreu.
Não quero saber hoje de voto impresso, TCU, CPI. Nem de devastação ambiental. Devastada está a mãe de Kathlen, que pariu a única filha aos 15 anos, numa idade em que adolescentes ricas ganham viagem ou festa de debutante.
Foram apreendidos com os policiais 12 fuzis e 9 pistolas. A Polícia Militar instaurou “um procedimento apuratório para averiguar as circunstâncias do fato". É a mesma enrolação de sempre. Não foi “um fato”. Foi um crime. “Procedimento apuratório”? A PM afirma que o tiro veio de bandidos. Kathlen está enterrada e, com ela, o bebê que teria pai e mãe formados, raridade nas favelas. Não sei em que momento paramos de reagir à barbárie oficial. Perdão, Kathlen, por nossa omissão.
O GLOBO